sábado, 29 de março de 2025

Sistema eleitoral (11): Reforma inviável

1. Embora concordando com algumas das "propostas modestas" de reforma do sistema político, apresentadas por António Barreto no seu artigo de hoje no Público, discordo inteiramente da principal, que consiste em abandonar o atual sistema eleitoral parlamentar, pelo qual os deputados são eleitos em círculos plurinominais, proporcionalmente aos votos das respetivas listas, substituindo-o por um sistema eleitoral, inspirado no caso francês, em que eles passariam a ser eleitos individualmente em círculos uninominais (tantos quantos os deputados a eleger), por maioria absoluta, se necessário com uma segunda volta.

A primeira objeção é a de que se trata de uma proposta qualificadamente inconstitucional, pois a CRP não só estatui obrigatoriamente a eleição por sistema proporcional, como inclui esse princípio entre as "cláusulas pétreas", insuscetíveis de revisão constitucional (CRP, art. 288º). Ora, um dos requisitios elementares para a admissibilidade de qualquer reforma política numa democracia constitucional é o de ela ter cabimento na Lei Fundamental. Mas, neste caso, esta proposta afronta flagrantemente a Constituição.

2. Também a considero politicamente inviável, por várias razões.

       - primeiramente, pela dificuldade técnica da sua implementação, pois obrigaria a estabelecer um mapa eleitoral de 230 círculos eleitorais de dimensão eleitoral aproximada, agregando os pequenos municípios e dividindo os maiores em circunscrições sem nenhuma consistência territorial, e obrigando à sua revisão periódica, por efeito das mudanças demográficas; 
         - em segundo lugar, e principalmente, pela enorme injustiça eleitoral a que o sistema francês, tal como todos os sistemas maioritários, dá origem, priviligiando o principal partido, à custa dos demais, sobretudo os de média e pequena dimensão, que obtêm uma reduzida expressão parlamentar, muito abaixo da sua expressão eleitoral, ou não obtêm nenhuma, o que induz à abstenção dos seus eleitores;     
        - por último, pela excessiva pessoalização da representação parlamentar, conferindo vantagem aos "caciques" políticos locais, o que facilita a criação de deputados tendencialmente vitalícios, sucessivamente eleitos na sua circunscrição. 

Com tal sistema eleitoral, a configuração da AR na imagem acima (eleições de 2024), mesmo com a mesma repartição de votos numa 1ª volta, seria substancialmente diversa, provavelmente com maioria absoluta do PSD e muito menos partidos representados.

3. Como venho defendendo há muitos anos, entendo que o sistema eleitoral vigente carece de obras, para o que têm sido apresentadas numerosas propostas de reforma, umas simples e outras complexas, desde a reformulação dos círculos eleirorais e a criação de um círculo nacional paralelo, passando pela adoção do voto preferencial, dando aos eleitores a possibilidade de exprimirem a sua preferência por um ou mais candidatos dentro da lista partidária em que votam, até à importação do sistema alemão, em que cerca de metade dos deputados são eleitos em círculos uninominais, mas depois contabilizados na quota proporcional do respetivo partido.

Além de constitucionalmente viáveis, todas elas podem, à sua maneira, melhorar o desempenho do sistema eleitoral. Ao contrário, por mais milagrosas que possam parecer, as propostas à partida constitucionalmente inviáveis, como a referida acima, de nada valem.




sexta-feira, 28 de março de 2025

Eleições presidenciais 2026 (13): Programas de Governo de candidatos presidenciais?

1. Compartilho da opinião do candidato presidencial Marques Mendes, quando este rejeita a advertência de Marcelo Rebelo de Sousa de que os candidatos e protocandidatos presidenciais se deviam abster de intervir publicamente durante a campanha eleitoral para as próximas eleições parlamentares, para não confundir as pessoas.

Na verdade, trata-se de duas eleições em tudo diferentes, a começar pela lógica política de cada uma delas. As eleições parlamentares visam o debate e a opção por programas e candidatos partidários ao governo do País, através das competentes medidas políticas e legislativas, incluindo a política europeia (UE) e a política internacional. Como é próprio das democracais parlamentares, nestas eleições os cidadãos votam em duas coisas ("2 em 1"): na composição da assembleia representativa e num programa e partido para o governo do País. Ao contrário, nas eleições presidenciais vota-se na personalidade mais apta para representar a República, interna e externamente, e para supervisionar o sistema de governo, assegurando «o regular funcionamento das instituições», como diz a Constituição, independentemennte de quem for Governo. Ao contrário do que sucede nos regimes presidencialistas (como nos EUA) e semipresidencialistas propriamente ditos (como na França), nas eleições presidenciais em Portugal os eleitores não são chamados a fazer opções de governo. 

É por isso que entre nós, diferentemente do que sucede naqueles regimes, os candidatos presidenciais não são apresentados por partidos e que os partidos podem prescindir de apoiar qualquer candidato (como foi o caso do PS desde há várias eleições) ou até podem apoiar candidatos oriundos de fora da sua área política (como foi o caso do PSD em 1991, apoiando Soares), e que os cidadãos não se sentem vinculados a nenhuma fidelidade partidária no seu voto, em relação ao candidato apoiado pelo seu partido.

Por conseguinte, em princípio, nada impede que um candidato presidencial fale publicamente da sua candidatura na pendência de uma eleição parlamentar.

2. No entanto, tal não é assim, quando se tratar de declarações públicas que, pelo seu objeto, não forem feitas nesse registo de candidatura presidencial, mas sim num registo de programa de governo, competindo, portanto, com o discurso dos partidos políticos na disputa parlamentar. Tal é o caso, porém, do longo artigo hoje publicado no semanário Sol Nascente pelo almirante Gouveia e Melo, cuja candidatura presidencial só falta ser oficialmente apresentada, e que por isso não pode intervir como se fora ainda um comum cidadão.

A intenção do autor de intervir pessoalmente no debate das eleições parlamentares não deixa, aliás, dúvidas desde o princípio do artigo, que começa assim: «Nas próximas eleições legislativas, os temas centrais que me parecem relevantes, e que suponho para a maioria dos portugueses, são: prosperidade – preços, habitação, salários baixos; equidade – justiça, educação e saúde para todos, desigualdades sociais, imigração; segurança – ameaças internas e externas; e liberdade – crescimento da intolerância». E segue-se depois um longo programa de ação política, desde a esfera internacional ao ambiente, onde não falta nenhum tema atual, como a defesa, a economia ou a habitação, e onde abundam noções típicas dos programas de governo, como "plano de ação", "apostar", "desafio", etc.

Ora, numa campanha eleitoral para as eleições parlamentares, não é pelo menos apropriado ver quase-candidatos presidenciais a apresentar programas de governo, em disputa com os partidos, como se fossem candidatos a Primeiro-Ministro. 

3. Obviamente, não contesto aos candidatos presidenciais o direito de tornarem conhecida a sua visão do País e a sua perspetiva para o seu futuro, bem como os valores que vão orientar a sua ação pública como supremos magistrados da República, na defesa e promoção dos grandes princípios constitucionais: dignidade humana, liberdade, igualdade e solidariedade; democracia liberal, Estado de direito e descentralização territorial; Estado social, desenvolvimento sustentável e economia social de mercado; integração europeia, comunidade lusófona e ordem internacional sujeita a regras, etc. 

Mas é evidente que não é disso que trata o texto em causa, que deliberadamente expõe programadamente os objetivos de governação para o País, para «não termos de ser pobres», como diz o seu título. Sem nenhuma dúvida o digo: isso é matéria para os Governos, não para o PR.

O que penso que os cidadãos querem dos candidatos presidenciais não é saber o que fariam se fossem Governo, mas sim como vão exercer os seus poderes constitucionais, sobretudo os mais intrusivos na esfera da AR e do Governo - como o veto legislativo, a dissolução parlamentar, o uso da palavra presidencial -, e à luz de que valores. Convém que os candidatos sejam tão claros quanto possível a esse respeito.

quinta-feira, 27 de março de 2025

História constitucional (12): Quem fez a Constituição de 1976?

1. Quando se celebram em breve os 50 anos da Assembleia Constituinte de 1975-76, importa revisitar esta obra, Os Constituintes, coordenada por Ivo Veiga, Mª Fernanda Rolo e Paula Borges Santos, publicada em 2021 pela editora da AR, sobre os deputados constituintes (entre os quais me conto), a qual, além de uma ficha biográfica para cada um deles, antes e depois da Constituinte, inclui um extenso estudo sobre eles e o seu trabalho na preparação da Constituição. 

Trata-se de um estudo original e meritório sobre a composição social da Constituinte, nos seus vários aspetos (faltando, porém, a estatística dos deputados que tinham tido atividade na oposição democrática à Ditadura, que iam desde o PCP ao PPD), sobre as principais ideias que ocuparam os debates, sobre as pressões políticas externas a que estiveram expostos, sobretudo no período mais "quente" da Revolução, e sobre o modo como foram vistos pela imprensa ao longo do tempo, a propósito de alguns episódios avulsos do labor constituinte. 

Além do seu valor como obra de sociologia política e eleitoral, ela é de inestimável valia para a história da CRP de 1976, nas vésperas de alcançar meio século de vida -, um enorme record entre as constituições de origem democrática entre nós. 

2. É certo que nem tudo merece aplauso nesta obra, como, por exemplo, a adoção da designação incorreta de "Constituição Política" (o adjetivo foi propositadamente afastado do nome da Lei Fundamental pelos constituintes), a bizarra tese de que o sistema eleitoral proporcional adotado «favorecia o sistema maioritário», a infundada tese de que a «restrição» do voto dos emigrantes (que nunca tinham tido direito de voto na nossa história eleitoral) visou condicionar a composição política da Constituinte, ou a ausência do destaque devido à ampla representatividade popular da Constituinte, quando os números fornecidos mostram a presença de 44 trabalhadores agrícolas e industriais (a maior parte no PCP e no PS), fenómeno único na história da nossa representação parlamentar.

Entre as lacunas, nota-se a falta da composição e da direção dos grupos parlamentares e das comissões parlamentares, onde decorreu a maior parte do debate na especialidade dos projetos constitucionais.

Todavia, embora devessem ter sido evitados, estes poucos lapsos e omissões não desvalorizam o contributo desta investigação para sublinhar o enorme avanço democrático da Constituinte de 1975-76, quanto à sua eleição, à sua composição social e política e à riqueza do debate nela travado, em relação às três anteriores assembleias constituintes nacionais.

terça-feira, 25 de março de 2025

Eleições parlamentares 2025 (5): Poluição política visual (bis)

Regressando ao cartaz eleitoral do Chega contra o líder do PSD, que critiquei no post anterior, penso que ele não teria a visibilidade e o impacto que tem, se não houvesse a estranha condescendência entre nós em matéria de propaganda política fixa em tudo quanto é espaço público (praças e rotundas, bermas de estrada e passeios, pontes e viadutos, etc.), como se a liberdade de propaganda eleitoral fosse absoluta e houvesse o direito de ocupação selvagem do domínio público, que lamentavelmente tem sido "validado" pela CNE, transformada em "cartel dos partidos" contra o interesse público. 

Ora, além de não ter base jurídica, a invasão do espaço público pela propaganda política não infringe somente a proibição de ocupação privativa duradoura do domínio público de fruição comum, mas também viola o princípio da igualdade de propaganda política, favorecendo obviamente os partidos com mais recursos e com menos escrúpulos cívicos e ambientais.

Mais uma vez, penso que é chegada a altura de confinar a propaganda política fixa aos espaços dedicados que os municípios estão legalmente obrigados a disponibilizar, libertando as cidades e vias de comunicação da miserável poluição visual do espaço público de que somos vítimas, sobretudo em períodos eleitorais (mas não só), sem paralelo em nenhum país civilizado.

Eleições parlamentares 2025 (4): Poluição política

1. Compreendo o protesto do líder do PSD, de que compartilho, contra o cartaz do Chega, profusamente espalhado por todo o País, que o associa diretamente a corrupção, ao lado de Sócrates (que, aliás, ainda não foi julgado e condenado por tal acusação). Penso que há limites para o combate político, mesmo em contexto eleitoral.

No entanto, julgo que é tanto ou mais condenável, que a acusação do Chega contra dois primeiros-ministros seja associada a «50 anos de corrupção», ou seja, identificando-a explicitamente com todo o regime democrático, como se a ditadura do "Estado Novo" tivesse sido imune - contra tudo o que sabemos - e como se a democracia liberal, com a liberdade de imprensa, o escrutínio político pluripartidário e as obrigações legais de transparência e de conflitos de interesse, não oferecesse melhores condições para combater a corrupção, cuja perceção, aliás, excede em muito a realidade, tendo em conta o escasso número de condenações, apesar do empenho do Ministério Público na sua investigação.

Por isso, ao contrário do que vejo por aí, o cartaz do Chega, em que este revela ostensivamente a sua hostilidade ao regime democrático não deveria ser condenado somente pelo político diretamente visado, mas também por todos os partidos e observadores democráticos.

2. Politicamente, creio que o cartaz não traz mais votos ao partido de Ventura, e que, pelo contrário, só favorece o PSD, e não é somente por permitir a Montenegro apresentar-se como vítima de "golpes baixos". 

Por um lado, ao condenar o regime democrático e ao recorrer a ataques pessoais de baixo quilate, como este, o Chega só pode consolidar o voto da pequena minoria da extrema-direita radical-populista, mas afastando o voto de direita civilizada que entende que o combate político não admite tudo. Por outro lado, ao atacar desta forma o líder do PSD, o Chega retira credibilidade a qualquer hipótese de aliança política entre os dois partidos, com que também algumas personalidades do PSD têm "flirtado", pois, depois desta provocação, é impossível o recuo da opção "não-é-não" de Montenegro, adotada nas eleições do ano passado.

Ou seja, com este cartaz, Ventura contribui para reduzir o seu eleitorado a um voto de protesto antissistémico, fora de qualquer equação de governo - o que é bom!

3. Quanto ao modo de reagir a estes ataques políticos, sou, desde há muito, contra o recurso à via judicial, porque, além de isso dar maior visibilidade ao ataque, não vejo nenhuma vantagem nem na judicialização do combate político (desde logo, pela demora do processo judicial), nem na politização da justiça (pois dificilmente uma decisão judicial deixaria de ser acusada de parcialidade política, qualquer que fosse).

Defendo, por isso, que a reação deve manter-se no espaço político, sem afastar, porém, a queixa à Comissão Nacional de Eleições, onde todos os partidos parlamentares estão representados, como órgão legalmente encarregado de velar pela lisura do combate eleitoral.

[Eliminado o primitivo nº 4, que vai ser publicado autonomamente]

Adenda
Quanto ao nº 3, um leitor comenta que «há jurisprudência firmemente estabelecida do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem [...], que afirma clarissimamente que o direito à liberdade de expressão prevalece, no domínio político, sobre o direito ao bom nome». Tem razão, mas essa jurisprudência do TEDH admite exceções, e tem sido contestada, inclusivamente por mim, desde há muito; e eu referia-me obviamente aos tribunais nacionais, que não estão estritamente vinculados à jurisprudência do TEDH - podendo fazer prevalecer o direito ao bom nome e reputação, autonomamente garantido na CRP, mas não na CEDH - e cuja hierarquia tem de ser esgotada, antes de ir para Estrasburgo. De qualquer modo, a controvérsia sobre essa questão - que Ventura vai explorar - só sublinha a inconveniência de seguir a via judicial, como defendo acima.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Eleições parlamentares 2025 (3): O valor da estabilidade política

Face ao péssimo resultado do PS (~15%) nas eleições regionais da Madeira - causadas pela demissão do Governo do PSD por efeito de uma moção de censura apresentada pelo Chega e apoiada por toda a oposição no parlamento regional, incluindo o PS madeirense -, o líder  nacional do PS, Pedro Nuno Santos, veio compreensivelmente dizer que «não pode ser feita uma relação com a política nacional», ou seja, com as próximas eleições nacionais, decorrentes da demissão do Governo de Montenegro.

Há evidentemente duas diferenças importantes: (i) o PS / Madeira nunca ganhou as eleições nem esteve perto disso, enquanto a nível nacional o PS é, por via de regra, candidato a ganhá-las; (ii) na Madeira o PS regional ajudou ativamente a derrubar o Governo regional, votando uma moção de censura do Chega (!), enquanto que na AR o PS se recusou a apoiar as moções de censura do Chega e do PCP, e o Governo caiu porque se fez deliberadamente demitir através da apresentação de uma moção de confiança, que o PS não se eximiu a rejeitar (como eu aqui defendi). 

No entanto, eu duvido que muitos eleitores façam essa distinção ou que ela lhes importe muito, e receio bem que o mesmo silogismo político que resultou na Madeira tenha também algum eco nas eleições nacionais, a saber: demitir um Governo a quem as coisas correm globalmente bem (como era o caso no Funchal e em Lisboa) pode gerar o seu reforço eleitoral e uma sanção política às oposições, em nome da estabilidade política. Não é  obviamente uma relação mecânica, mas faz algum sentido.

Adenda
Perante mais uma derrota eleitoral, desta vez humilhante, o líder do PS regional entendeu não se demitir imediatamente, como devia, limitando-se a anunciar a convocação de eleições internas só para depois das eleições autárquicas, previstas para o outono. Cabe perguntar se faz algum sentido o PS ir, na Madeira, para eleições parlamentares e eleições locais nacionais, incluindo a crucial escolha de candidatos, sob a liderança de alguém politicamente tão desautorizado por mais este enorme revés eleitoral. A autonomia partidária regional também inclui desrespeitar os cânones mínimos da responsabilidade política?

domingo, 23 de março de 2025

Memórias acidentais (26): O fascínio das imagens

Nesta foto, suponho que de 1986, apareço ao lado de Mário Soares, então no início do seu primeiro mandato presidencial, que observa uma foto minha, exposta nos 7ºs Encontros de Fotografia de Coimbra, que, sob a direção de Albano da Silva Pereira, marcaram durante anos a agenda fotográfica nacional, com grandes exposições de fotógrafos nacionais e estrangeiros de topo.

Tendo chegado tarde ao interesse pela imagem fotográfica, não demorei, porém, muito tempo a apaixonar-me pela arte, que estudei a fundo, quer na sua estética quer na sua história. Pouco depois tinha o meu próprio laboratório instalado em casa e fui acumulando muitas dezenas de álbuns de negativos e de caixas de diapositivos, bem como colecionando livros de história da fotografia e câmaras antigas, da marca que eu usava nessa altura (Contax, entretanto descontinuada).  

Os anos passaram. As câmaras digitais revolucionaram a técnica. A minha disponibilidade reduziu-se. O laboratório, doei-o há anos a uma associação fotográfica. Todavia, embora de modo bem menos intenso do que há quatro décadas, a fotografia, especialmente de paisagem rural e urbana, continua a ser o meu hobby principal. Gostei de reviver esta foto e o que ela representou para mim.  

"Old loves die hard" [velhas paixões custam a morrer].

sexta-feira, 21 de março de 2025

Eleições parlamentares 2025 (2): Abuso de poder do Governo demitido

1. Esta notícia de que o Ministério da Saúde vai dar andamento ao processo de criação de PPP de gestão de vários hospitais públicos é uma descarada violação dos limites constitucionais de um "Governo de gestão", que não pode praticar senão os «atos estritamente necessários par assegurar a gestão dos negócios públicos»

Ora, primeiramente, não se vê como é que  o lançamento de tais PPP seja "estritamente necessária". Se o Governo demitido nem sequer pode mudar a gestão dos hospitais em causa, como é que pode entregá-los à gestão privada? Em segundo lugar, a razão por que um Governo demitido não pode precipitar-se em implementar medidas políticas dessa natureza está no facto de o Governo seguinte (e, antes dele, os eleitores) poder não concordar com a solução e não dever ser confrontado com factos consumados.

Além da patententemente ilegal, esta decisão da Ministra da Saúde, seguramente com cobertura do PM, revela uma óbvia falta de "chá democrático" - o que não surpreende, vinda de onde vem...

2. Pior do que essa medida específica, uma visita ao site do Governo desde a demissão mostra que o PM e os seus ministros continuam a tomar numerosas medidas, cuja «necessidade estrita» é patentemente inexistente, com a agravante de que se trata de distribuição de dinheiro público em investimentos e em subsídios a esmo. Aliás, o Governo mantém ou até aumentou a sua agenda pública de cerimónias, anúncios e inaugurações, como se estivesse em plenitude de funções. 

Ou seja, apesar de estar demitido e de já estarem marcadas as eleições parlamentares, em que ele vai ser sujeito ao julgamento dos cidadãos, o Governo converteu-se, sem qualquer escrúpulo político, em pura máquina propaganda eleitoral a favor do PSD, paga por dinheiro público, em flagrante violação do princípio constitucional da imparcialidade eleitoral das entidades públicas.

Indepedentemente da impugnação contenciosa daquelas decisões, por excesso de poder  - que o Ministério Público deveria levar a sério, cumprindo a sua obrigação constitucional de defesa da legalidade democrática -, cabe perguntar se os demais partidos parlamentares e o PR vão assistir silenciosos a esse reiterado abuso governamental.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Contra a barbárie tauromáquica (17): Até o México já proíbe!

O meu aplauso para esta importante medida legislativa do parlamento da cidade do México (território federado daquele Estado), proibindo as touradas com sangue, passando o espetáculo a não ter bandarilhas nem espadas e, portanto, respeitando a integridade física do animal, que passa a ser apenas a ser "ator" no espetáculo, regressando incólume à sua ganaderia.

Esta medida é tanto mais importante quanto é certo que o México é o país da América latina que mais acolheu a herança espanhola da tauromaquia. Se os demais estados mexicanos seguirem o exemplo da capital, a barbárie tauromáquica perde um dos seus maiores apoios, e a civiliização vai-se libertando deste flagelo. 

E em Portugal, quando é que nos vamos libertar do pequeno (mas, pelos vistos, poderoso) lobby tauromáquico e desse espetáculo degradante de tortura animal para gáudio público, que envergonha o País?

Adenda
Um leitor que se declara absolutamente contra as touradas, acha que «estas touradas continuam ser touradas». Mas, embora sendo eu contra as touradas sem concessões, como se pode ver nos meus posts desta série, penso que (i) estas touradas mexicanas perdem o elemento mais degradante das touradas verdadeiras, que é o sangue e a tortura animal e que (ii) o fim do sangue e da tortura vai deixá-las muito provavelmente sem expectadores, pelo que se vão extinguir naturalmente. Portanto, se houvesse uma proposta destas em Portugal (o que, infelizmente, não está na agenda política dominante), eu apoiaria

segunda-feira, 17 de março de 2025

Eleições parlamentares 2025 (2): O desafio para o PS

1. Creio que estas eleições, inopinadamente precipitadas pelo Governo com a sua moção de confiança, são uma incógnita para ambos os partidos de governo, mas julgo que o desafio é maior para o PS.

A seu favor o PS tem o golpe na credibilidade do líder do PSD, por causa do caso Spinumviva e da fuga para eleições, bem como as dificuldades governamentais em várias áreas, como a saúde e a cultura. Contra ele, porém, tem a boa situação económica e social, que favorece o Governo, e a distribuição de benesses prodigalizadas, ao longo destes meses, a várias constituencies eleitorais importantes, mercê do excedente orçamental que recebeu dos governos do PS. Ora, não há memória de a oposição ganhar eleições quando a economia e as finanças correm bem ao Governo...

Acresce que, apesar do louvável exercício de moderação e responsabilidade de que deu provas ao viabilizar o Governo da AD e, depois, ao recusar-se a derrubá-lo, mediante a abstenção na votação de moções de censura, a liderança de PNS continua sem se conseguir afirmar para fora do Partido (o que os projetados Estados gerais poderiam ter permitido) e sem que o seu estilo de comunicação política consiga gerar a necessária adesão e empatia no eleitor comum. Ora, nas eleições parlamentares, a disputa também envolve os líderes dos partidos candidatos ao Governo, como potenciais primeiros-ministros, o que estabelece especiais exigências ao challenger... 

Em suma, nada indica que vá ser fácil a aposta do PS nestas eleições, que poderia ter travado.

2. Outra vantagem do PSD consiste em ir a eleições de novo em coligação com o CDS, pois, embora este valha pouco por si, a soma dos seus votos pode valer vários deputados a mais à coligação do que daria aos partidos separados. Provavelmente, sem a coligação nas eleições do ano passado, nem o CDS teria elegido deputados, nem o PSD teria podido igualar o PS.

Por isso, pergunto se não valeria a pena o PS equacionar a hipótese de uma coligação eleitoral com o Livre e o PAN. Além de estabelecer um level playing field competitivo, essa solução poderia contribuir para superar a ideia de isolamento político do PS à esquerda, depois da dissolução da "Geringonça" com o PCP e o BE, sem perder o voto centrista, dada a ideia de moderação política que aqueles partidos projetam.

3. No entanto, mesmo na hipótese de o PS vencer as eleições - mas seguramente longe da maioria absoluta -, ele não poderia beneficiar da existência de uma maioria à esquerda, que está claramente fora de questão, dado o declínio do BE e do PCP, ficando confrontado no parlamento com uma clara maioria de direita, tornando praticamente inviável uma solução de governo.

Com efeito, ainda que o PS se propusesse formar um Governo minoritário, e o PSD o viabilizasse - reciprocando o que o PS fez no ano passado, o que não é seguro -, ele teria escassas chances de vingar, face à incapacidade de fazer aprovar as suas propostas contra os partidos de direita no parlamento e, pior do que isso, o risco de ver aprovadas propostas adversas por essa mesma maioria. 

Ou seja, nessas condições, seria um Governo parlamentarmente ainda mais frágil do que o Governo cessante da AD.


Nos 50 anos da CRP (1): "A Constituição que resistiu ao tempo"

1. Concordo com a antiga deputada da Assembleia Constituinte de 1975-76, Helena Roseta, quando defende que entre os fatores que tornaram possível que a CRP de 1976 tenha vencido o teste do tempo e esteja nas vésperas de comemorar os 50 anos - quando todas as anteriores constituições portuguesas com  origem democrática (1822, 1838, 1911) o tinham perdido - esteve o empenhamento convicto dos deputados constituintes, entre os quais ambos nos contámos, na sua elaboração. 

Mas o nosso esforço teria sido provavelmente em vão, se não tivéssemos beneficiado do tempo e das circunstâncias da revolução do 25 de Abril que lhe deu origem, nomeadamente a vastíssima adesão popular ao fim da ditadura e da guerra colonial, a firmeza do Movimento das Forças Armadas (MFA) na sua defesa contra recuos ou desvios, a fruição espontânea das liberdades civis e políticas (liberdade de expressão, de reunião e manifestação, de criação de sindicatos e de partidos políticos) antes de qualquer lei a consagrá-los, a elevação dos principais líderes partidários (Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Freitas do Amaral) e outros responsáveis políticos (como Costa Gomes e Melo Antunes) no vivíssimo confronto político que se seguiu, a pronta convocação das eleições para a Assembleia Constituinte por sufrágio universal (sem precedente entre nós) e a extraordinária participação dos cidadãos nelas, conferindo aos deputados constituintes uma legitimidade e um mandato democrático sem paralelo na nossa história constitucional.

Há conjunturas felizes assim na história dos povos e das nações!

2. Também tem razão Helena Roseta quando lembra que os vigorosos debates políticos na Constituinte eram, por vezes, verbalmente violentos, mas sem pôr em causa o respeito pessoal entre os intervenientes, citando o caso dos meus confrontos com o então seu marido, o deputado Pedro Roseta. 

Confirmo! Tendo eu sido um dos deputados mais ativos na Constituinte, como porta-voz do PCP, e tendo travado dos mais aguerridos debates políticos, por vezes excessivos, com a bancada do então PPD, não só não me incompatibilizei com ningém, como, pelo contrário, ganhei respeito, e mesmo amizade, com muitos deles, sentimentos que perduraram depois, quer no convívio parlamentar na AR, quer pela vida fora, como foi o caso da própria Helena Roseta, com quem haveria de conviver vinte anos depois na bancada parlamentar do PS, ambos como deputados independentes.

Como já tive oportunidade de afirmar, julgo que para esse "clima" pessoalmente respeitoso pesou não somente a memória das lides da oposição democrática contra a ditadura, que era comum a muitos deputados de várias bancadas, mas também as redes de conhecimento académico, quer entre antigos condiscípulos, quer entre docentes universitários (sobretudo nas faculdades de direito de Coimbra e de Lisboa). Mas estou de acordo, mais uma vez, com Helena Roseta, quando ela destaca a convicção compartilhada por todos, de que estávamos a criar história, «com a consciência de que está[vamos] a construir o futuro», e que não podíamos repetir o falhanço das anteriores gerações de constituintes, cuja obra não perdurou, pois a sua vigência variou entre menos de um ano (a Constituição de 1822), cerca de quatro nos (a de 1838) e menos de 15 anos (a de 1911).

E o futuro deu-nos razão!

sábado, 15 de março de 2025

Contra a corrente (12): Mais despesa militar, para quê?


Como se vê nesta figura (colhida AQUI), mesmo sem os EUA, o Canadá e a Turquia, a Nato europeia tem mais tropas do que a Rússia, apesar de esta estar mobilizada para a guerra na Ucrânia há três anos; e, como mostrei anteriomente (AQUI), também tem uma despesa militar superior. 

Porquê então um aumento exponencial da despesa militar da UE e dos seus Estados-membros, como se está a decidir, com aplauso meswmo dos partidos de esquerda, à custa de mais dívida pública, de menos investimento público em áreas críticas para o crescimento económico e do sacrifício do Estado social?!

Com o fim da guerra na Ucrânia na agenda política e a perspetiva de um acordo de segurança recíproca com a Rússia, esta "política de guerra" da União é ainda menos justificável.

sexta-feira, 14 de março de 2025

Eleições parlamentares 2025 (1): Como travar o abuso das eleições?

1. Causada pela demissão do Governo, decorrente da derrota da provocatória moção de confiança (apresentada apesar da derrota de duas moções de censura), a convocação de eleições antecipadas impunha-se neste caso, desde logo porque não havia condições para uma alternativa de governo no atual quadro parlamentar, hipótese que o próprio PSD afastou liminarmente, apostanto tudo nas eleições e procurando trasformá-las num plebiscito ao Primeiro-Ministro cessante, cuja credibilidade política tem vindo a ser contestada, por causa da sua empresa "familiar" e das avenças associadas.

No entanto, se não havia alternativa a esta terceira dissolução parlamentar às mãos do atual PR, tal não era o caso nas duas anteriores, pois a de 2021 (rejeição parlamentar do orçamento), embora defensável, foi contestada, e a de 2023 (demissão de A. Costa) foi puramente abusiva (como mostrei AQUI). 

Com a terceira dissolução parlamentar em três anos (2022-25), MRS iguala o record que até agora pertencia ao primeiro PR, Ramalho Eanes, na fase de consolidação do regime democrático, mas igualando-o num espaço mais curto de tempo .

2. Em menos de 50 anos, desde 1976, vamos eleger o 18º parlamento, e dos 17 precedentes, somente 6 (ou seja, pouco mais de 1/3) completaram a legislatura de 4 anos, que corresponderam quase sempre a parlamentos em que havia maioria parlamentar de um partido (1987-91, 1991-95, 2005-09) ou de uma de coligação ou quasecoligação governamental (2011-15 e 2015-2019), sendo a única exceção o caso de 1995-99, em que o PS tinha maioria relativa, embora numerosa.

Salvo o caso especial de 1979-80, em que a convocação de eleições era imposta pela Constituição, a AR agora dissolvida foi a mais curta de todas, e as próximas eleições vão ser as quartas em 6 anos (2019, 2022, 2023, 2025), sendo, portanto, o período de maior rotatividade parlamentar até agora, que evoca a má memória da I República. 

Acresce que esta instabilidade parlamentar, que é acompanhada de idêntica instabilidade governativa, tende a ser agravada pela fragmentação da representação parlamentar e pelo enfraquecimento da posição relativa dos dois tradicionais partidos de governo, o PS e o PSD.

Além dos elevados custos financeiros e económicos associados a cada eleição, esta inaceitável rotatividade parlamentar é suscetível de gerar o cansaço dos cidadãos e os descrédito da democracia parlamentar. Não podemos continuar assim!

3. Torna-se necessário pensar nas soluções que possam atalhar este perigosa deriva para a instabilidade política (governativa e parlamentar) permanente.

Ocorrem-me três vias, aliás complementares:

    - tornar constitucionalmente mais exigentes as condições para a dissolução parlamentar, delimitando a discrionariedade do PR nesta matéria e impedindo dissoluções por capricho presidencial;

    - alterar o mapa dos círculos eleitorais, dividindo os maiores, de modo a reduzir o índice de propocionalidade do sistema eleitoral e a proporcionar vitórias mais robustas e melhores condições de governablidade aos partidos vencedores das eleições;

    - estando excluída entre nós, pelo menos por agora, a hipótese de governos de grande coligação ao centro (à alemã), não é impossível, porém, equacionar um pacto estável entre os dois tradicionais partidos de governo , no sentido de, em caso de vitória eleitoral sem maioria absoluta, cada um deles deixar governar o outro salvo coligação governamental maioritária alternativa -, viabilizando a constituição do Governo e prescindindo de votar moções de censura, a troco da negociação dos orçamentos (fórmula ensaiada nesta legislatura, agora unilateralmente rompida pelo PSD).

No clima de elevada crispação atualmente prevalecente entre o PSD e o PS, não parece haver nenhumas condições para esse triplo acordo político entre ambos. Mas nunca é inoportuno aventar os possíveis remédios para a doença que pode ameaçar a estabilidade do próprio regime democrático, meio século depois do seu nascimento.
[revisto o § 3]

Adenda
Uma das razões para levar a sério uma reforma do nosso sistema de governo em prol da estabilidade governativa e parlamentar, como a que acima proponho, está em prevenir soluções ilusórias e perigosas, como a de mudar para um regime presidencialista ou para um regime semipresidencialista à francesa, como hoje, dia 15, se sugere nesta coluna do Diário de Notícias. Os problemas políticos complexos não se resolvem com falsas boas ideiais.

Adenda 2
Um leitor acusa-me de vir «validar a experiência do Governo da Geringonça de 2015, contra o vencedor das eleições», que eu teria criticado na altura, mas é uma confusão sua. Se for ver este blogue nessa época, verá que eu critiquei a aliança governativa do PS com as "esquerdas da esquerda" (no que, aliás, não mudei), mas não só não pus em causa a sua legitimidade política e constitucional, como a defendi contra os dirigentes e comentadores da direita, que, pouco depois, porém, contradizendo-se, haveriam de aplaudir solução idêntica no governo regional dos Açores, em 2020, nesse caso contra o PS, que venceu as eleições regionais. Mantenho essa doutrina (que o PS respeitou no ano passado, ao viabilizar, pela abstenção, o Governo da AD): cada um dos dois partidos de governo (PS e PSD) só deve rejeitar um governo minoritário do outro, caso consiga estabeleçer um acordo de governo maioritário com outros partidos.

quinta-feira, 13 de março de 2025

O caso Montenegro (11): Sob alçada do Ministério Público

1. Ao anunciar uma "investigação preventiva" à alegada empresa familiar de Luís Montenegro, para verificar se há matéria suficientemente credível para abrir um inquérito penal, o Ministério Público (MP) não seguiu a sua prática anterior, quando se tratava de denúncias contra políticos, de abrir imediatamente inquérito após qualquer denúncia e de o tornar público, por via dos jornais ou televisões "amigo/as", abrindo automaticamente o processo de julgamento e condenação na praça pública, sem contraditório nem defesa, punição que o deliberado atraso na conclusão do inquérito tornava irreversível, mesmo que o caso viesse a "dar em nada", passados anos.   

Saudando esta evolução positiva, há muito reclamada (por último, pelo Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça, de que sou coautor), é de esperar, porém, que não se trate de um privilégio especial singular para o político agora em causa, e que não seja uma desculpa para não avançar com o inquérito, se devido.

2. Apesar de o MP não ter revelado (e bem) o objeto das denúncias contra Montenegro, o inevitável Correio da Manhã vem hoje informar, em manchete, que se tratará de infrações fiscais, o que não surpreende, dado que o principal objetivo dessas fictícias empresas familiares de profissionais liberais (que o PM não podia ter mantido) é substituir o IRS pelo IRC (com taxas muito menores), imputar-lhes despesas pessoais e domésticas sem nenhuma relação com a atividade profissional e beneficiar ainda da devolução de IVA pela sua aquisição. Só vantagens fiscais, portanto.

Contudo, como tenho argumentado (por exemplo, AQUI), pode haver neste caso uma atividade delituosa bem mais grave, que é a de recebimento indevido de vantagem, se se provar que as generosas avenças conhecidas não correspondem à prestação de serviços efetivos que justifiquem o seu elevado montante (desde logo, por falta de meios da tal "empresa") e que, portanto, não passam de pagamentos de favor de empresários ao advogado que, depois de ser líder político local, ascendeu a líder nacional de um partido de governo e acabou em chefe de Governo. Previsto e punido com pena de prisão pela Lei dos crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos, esse crime tem também como pena acessória a demissão do cargo.

Ao pé das possíveis infrações fiscais, trata-se agora de "caça grossa" em matéria penal, sendo, aliás, um dos crimes que pode fundamentar legalmente o recurso à tal "averiguação preventiva" anunciada pelo PGR.

3. Embora tivesse por objeto a verificação de eventual violação, pelo PM, da regra da exclusividade do cargo governativo e da obrigação de declaração de património e de conflitos de interesse - o que, sendo ilícito, não é crime -, o inquérito parlamentar requerido pelo PS carrearia seguramente elementos seguros para inculpar, ou ilibar, Montenegro quanto às referidas infrações penais. Mas, tendo o Governo sido demitido, por sua iniciativa e com a colaboração do PS, fica definitivamente prejudicada essa via de apuramento dos factos eventualmente relevantes para efeitos penais, acima referidos, pelo que só resta a via da investigação penal

Ora, caso os vários indícios existentes e outros eventualmente colhidos pelo MP habilitem a abertura de inquérito, não se vê como é que as referidas infrações, a existirem, poderiam escapar a um simples exame, sem grande demora, às contas da suposta empresa, ao destino dos pagamentos das avenças e ao registo tributário da "empresa", para efeitos de acusação, com as inevitáveis consequências políticas, ou para a encerrar o caso, ilibando o PM cessante das suspeições que sobre ele pesam e que, de outro outro, permanecerão, por falta de apuramento concludente. 

Por isso, mesmo que acabasse por ilibar Montenegro, o inquérito do MP seria justificado.

Adenda
Um leitor, muito crítico de Montenegro, comenta que, se, apesar da evidência da violação da exclusividade e dos significativos indícios penais, ele consegue escapar tanto ao inquérito parlamentar como ao inquérito-crime, «deve ir em peregrinação a Fátima agradecer a proteção divina». Sim, mas se escapou ao inquérito parlamentar, foi por condescendência do PS, que preferiu votar contra a provocatória moção de confiança do Governo, podendo ter-se abstido, para preservar o inquérito; e se escapar ao inquérito penal, pode ficar a devê-lo à nova contenção do MP, com o novo PGR, depois de muitas investigações precipitadas e falhadas contra políticos, e da crítica que eles suscitaram. Resta saber se, ao escapar aos inquéritos, Montenegro se liberta da suspeição sobre a sua responsabilidade -, o que não é provável.

Adenda 2
Concordo com a ideia de um leitor segundo a qual o MP deveria suspender a investigação deste caso até ao dia das eleições, pois tanto o risco de "vazamento" de informações para o público, como a decisão sobre ela, qualquer que fosse o sentido, «seriam sempre interpretadas como uma interferência nas eleições, o que deve ser evitado»

terça-feira, 11 de março de 2025

O caso Montenegro (10): O PR não devia coonestar o golpe do Governo

Penso que o Presidente da República não devia dar seguimento ao golpe do Primeiro-Ministro e do seu Governo para fugirem ao escrutínio parlamentar acerca da ligação daquele à sua empresa e às respetivas avenças. Pelo contrário, o PR deveria fazer valer essa obrigação essencial de qualquer Governo numa democracia parlamentar (como mostrei em post anterior) e fazer respeitar as prerrogativas da AR e os direitos da oposição, que integram a sua missão presidencial de "poder moderador".

Por isso, julgo que, em vez de dissolver imediatamente a AR e convocar eleições, cancelando a CPI - que era o grande objetivo de Montenegro -, o Presidente deve suspender essa decisão e manter o Governo em gestão até a CPI concluir o seu trabalho, dentro de 90 dias, como proposto pelo PS

Só então as eleições devem ser convocadas, com o conhecimento público das conclusões do inquérito, confirmando, ou não, as acusações que têm sido formuladas contra Montenegro, e habilitando os cidadãos a um voto esclarecido, em vez de serem chamados, como pretende o PSD, a uma espécie de plebiscito sobre o PM, feito "vítima" da demissão, sem conhecimento dos factos que só o inquérito parlamentar pode proporcionar.

Adenda
Um leitor sugere maliciosamente que o PR poderia seguir esse caminho, se se tratasse de um PM e um Governo do PS, mas que não vai fazê-lo agora, «para não enterrar o líder do seu partido de origem».  Seria bom que o PR não desse motivo a tais sugestões, tratando-se, como se trata, de um "poder neutro", na formulação clássica de Benjamin Constant, que não deve mover-se por preferências ou animosidades partidárias...

Adenda 2
Um leitor comenta que o PS deveria ter considerado a «desesperada cedência do Governo, de última hora, quanto ao inquérito parlamentar». Compreendo o argumento (que, se fosse eu, não teria desprezado), mas depois de ter declarado a guerra à AR e ao PS (apesar de este ter inviabilizado duas moções de censura), com a provocatória moção de confiança (como mostrei AQUI), em reação à proposta de inquérito parlamentar do PS, Montenegro perdeu toda a credibilidade política junto do PS para tentar negociar a CPI, o que, aliás, deve ter feito contravontade, por provável pressão de Belém e do susto da sondagem de opinião publicada ontem de manhã no Diário de Notícias, que colocava o PS muito à frente do PSD. Na política, antes de fazer uma declaração de guerra, convém ponderar se o único modo de evitar uma provável derrota não é retirá-la sem condições. 

Adenda 3
Depois de ter avançado provocatoriamente com um moção de confiança, explicitamente destinada a provocar eleições, a declaração de Montenegro, depois de conseguir esse objetivo, de que «tentámos a todo custo evitar eleições», não tem a mínima credibilidade, não passando de uma tentativa desesperada de fugir à censura pública pela provocação de eleições para fugir ao escrutínio parlamentar. Assente a indisponilidade do PS em ceder à chantagem, o único modo de evitar eleições era retirar a provocatória moção, sem condições, o que o Governo se recusou a fazer. Há limites para a hipocrisia política.

O caso Montenegro (9): Conspiração contra a legalidade e a ética republicana

1. Ao provocar as oposições na AR com uma moção de confiança para se fazer demitir e avançar para eleições, Luís Montenegro consegue furtar-se ao inquérito parlamentar sobre a manutenção da sua pseudoempresa de prestação de serviços jurídicos enquanto Primeiro-Ministro, e à sua quase certa condenação. Mas não pode ficar politicamente impune.

Se existe algo de politicamente intolerável numa democracia parlamentar é a fuga deliberada de um PM ao escrutínio parlamentar, especialmente quando se trata de suspeitas fundadas de violação pessoal das mais elementares obrigações de não acumulação entre a atividade governamental e atividades privadas (e das respetivas remunerações...) e do inerente conflito de interesses, entre o interesse público e os seus interesses privados, ou os interesses dos seus clientes empresariais.

Montenegro e o PSD não podem tentar fazer dos cidadãos, parvos.

2. Na sua penosa entrevista de ontem a uma televisão, Montenegro declarou que não cometeu nenhum crime, mas esta declaração não passa de uma tentativa canhestra para "sacudir a água do capote", escondendo o principal. 

Com efeito, por um lado, a responsabilidade política é obviamente muito mais ampla do que a responsabilidade criminal, pois, além de outros ilícitos não criminais (por exemplo, a obrigação legal de exclusividade), há a violação de elementares obrigações de ética política quanto à separação entre política e negócios e quanto à prestação de contas públicas. E é de violação dessas obrigações legais e éticas que ele está a ser fundadamente acusado, e é do apuramento dessas acusações que ele "foge a sete pés", arrastando  o PSD e sacrificando o País (como mostrei AQUI). 

Por outro lado, como tenho argumentado desde o início deste novela de baixo quilate (AQUI), resta apurar se, ao manter a sua "empresa-avatar" (como a qualifiquei AQUI), não há mesmo um crime de recebimento ilícito de vantagem (previsto e punido com pena de prisão até cinco anos e com a demissão do cargo, pelos art. 16º e 30º da Lei dos Crimes de Responsabilidade), se se provar que as tais avenças não passavam de pagamentos de favor, sem correspondência em serviços efetivos, e/ou que Montenegro imputava à sua empresa despesas pessoais ou domésticas (como é usual neste tipo de sociedades fictícias). Receio mesmo que a principal razão para a fuga de Montenegro ao inquérito parlamentar possa derivar desse risco.

Por isso, a declaração de isenção de responsabilidade criminal apenas revela mais um vez que ele não está à altura do cargo e das suas responsabilidades numa democracia parlamentar.

3. Na sua comprometedora fuga para a frente, para se libertar do escrutínio parlamentar às suas responsabilidades pessoais, Montenegro não arrasta para a lama política somente o PSD, onde nem uma única voz se levantou publicamente para defender que ele não deveria fugir ao inquérito parlamentar ou para denunciar o golpe da apresentação da moção de confiança, como provocação que é especialmente ao PS (como mostrei AQUI), depois de este ter impedido a aprovação de duas moções de censura e a consequente demissão do Governo.

Além de ter mobilizado todo o Governo atrás de si, incluindo na patética cena do "coro mudo" aquando da sua declaração ao País, Montenegro também arrasta o seu parceiro da AD, o CDS, que conseguiu o prodígio de ter desaparecido inteiramente desta estória, mostrando a  sua total falta de autonomia e a sua irrelevância. Tratando-se de um partido definidor do regime democrático, observar este cadáver político, é uma lástima.

4. Como se não bastasse ver o PM, o Governo e os partidos da AD unidos nesta conspiração contra a legalidade e a ética republicana, não se pode esquecer que nem o Presidente da AR nem o PR tiveram o cuidado elementar de lembrar ao PM e ao Governo que são politicamente responsáveis perante a representação nacional e que a fuga a um inquérito parlamentar constitui uma grave falta política. Nenhum deles honrou o seu mandato político e institucional.

Estando em causa uma conspiração para esconder uma grave infração contra a legalidade democrática e a ética política, sem precedente na nossa história democrática, nada disto pode ficar politicamente impune - a palavra aos cidadãos.

Adenda
Numa exibição de descarado desrespeito pela inteligência dos cidadãos, o ministro Paulo Rangel - quiçá um dos mentores desta opção de fuga à responsabilidade política do PM -  veio declarar há dias que o PSD «merece maioria absoluta» nas eleições que provocou. Mas, perante a vergonha política e moral patente neste processo, o que o PSD merece, se houver justiça eleitoral neste mundo, é uma minoria absoluta.

Adenda 2
A propósito de ética e de coerência política, Montenegro veio ontem declarar que se mantém como candidato a PM, mesmo que venha a ser penalmente arguido.  Ora, uma vez que o PSD tinha definido que nenhum arguido pode ser candidato a deputado, como entender esta nova posição do seu líder? A regra de ética política vale para todos, menos para ele? Não se pode ser deputado, mas pode-se ser chefe do Governo? Se é assim, é claro que Montenegro entrou em irremissível desnorte político e moral.

Adenda 3
Comentando a declaração de Montenegro de que é candidato a PM (e, logo, a deputado) mesmo que seja arguido (ver "Adenda" anterior), um leitor pergunta «se os eleitores do PSD se sentem confortáveis com isso». Se eu fosse um deles, o que não é o caso, seguramente que não me sentiria confortável -, pelo contrário!

domingo, 9 de março de 2025

O caso Montenegro (8): Um mau negócio para o PS

1. Tal como antes defendi que o PS não devia apresentar nem votar nenhuma moção de censura, para não derrubar o Governo, também agora defendo que não deve votar contra a moção de confiança apresentada por este, sendo preferível a abstenção, para evitar a fuga do Primeiro-Ministro ao escrutínio parlamentar sobre a sua comprometedora ligação à Spinumviva, o que é inaceitável. 

Por um lado, é por demais evidente que este desafio do PM à oposição para a sua demissão parlamentar constitui uma verdadeira provocação política (como defendi AQUI), que visa culpabilizar a oposição pela queda do Governo e, sobretudo, obter uma espécie de "amnistia" por via eleitoral para o que se afigura ser uma intolerável acumulação das funções de governante e de verdadeiro responsável e beneficiário de uma pseudoempresa familiar, criada para continuar a prestar os seus anteriores serviços de advogado aos mesmos clientes, em violação da regra da exclusividade e em conflito de interesses entre as duas atividades (como mostrei AQUI). 

Sem deixar de negar ao Governo a confiança que ele pede, para o que basta a abstenção, a prioridade do PS deveria ser impedir, em defesa da democracia parlamentar, esta fuga sem precedentes de um PM a essa forma qualificada de escrutínio político, por uma questão tão grave como essa.

2. Nem se diga que a realização de eleições e a nomeação de novo Governo não impede a retoma posterior do inquérito parlamentar, pois, para além de ser uma hipótese constitucionalmente muito problemática, não vejo que faça algum sentido uma investigação parlamentar sobre um anterior mandato de Primeiro-Ministro, quer ele se mantenha, quer não, como chefe do novo executivo depois das eleições. 

Se, apesar de tudo, o PSD, fazendo-se de vítima e invocando as boas condições económicas e sociais, ganhasse as eleições e formasse novo Governo, a retoma do inquérito parlamentar apareceria como uma manifestação de mau-perder do PS; caso fosse derrotado, e Montenegro deixasse de ser PM, o inquérito parlamentar surgiria como "chover no molhado". 

Ou seja, mesmo que fosse constitucionalmente admissível, o inquérito parlamentar no novo parlamento seria politicamente pouco convincente.

3. Acresce que, tanto quanto é possível antecipar neste momento, é pouco provável que as eleições tenham um resultado clarificador da situação política e proporcionem uma solução governativa evidente. Na melhor das hipóteses, o PSD poderá pensar numa sensível subida eleitoral, mas aquém de uma maioria absoluta, mesmo numa coligação alargada à IL; e quanto ao PS, mesmo que venha a vencer as eleições, igualmente sem maioria, o mais provável é que não tenha condições para formar um Governo politicamente sustentável, dada a óbvia improbabilidade de uma maioria à esquerda.

Avançar para eleições de resultado tão imprevisível, incorrendo nos respetivos custos financeiros e económicos e suspendendo a governação do País durante meses, pode fazer sentido para o PSD, porque consegue o seu objetivo essencial, que é a fuga ao escrutínio parlamentar de Montenegro, mas pode ser um mau negócio para o PS, que desiste do inquérito parlamentar e pode não obter nada em troca, podendo mesmo pôr em causa a sua liderança, em caso de derrota.

Adenda
Um militante socialista que concorda com este post manifesta a sua estranheza por o líder do PS «cair nesta emboscada do Governo, em nome de uma posição anunciada há meses, em abstrato, sem considerar a mudança substancial de circunstâncias, como é o interesse desesperado do primeiro-ministro em fugir do inquérito parlamentar que certamente o enterraria». Ao invocar a noção de "alteração das circunstâncias", o leitor deve ter formação jurídica, pois trata-se de uma situação que permite a modificação unilateral das obrigações contratuais, incluindo a rescisão; mas não é preciso ter conhecimentos jurídicos para recorrer a essa figura na vida política.

Adenda 2
É estranho que ninguém censure o Presidente da AR - que, aliás, deve a sua eleição a um acordo com o PS - por vir apelar publicamente às oposições para viabilizarem a moção de confiança ao Governo, para evitar a crise política, em vez de apelar ao seu próprio partido para a retirar, pois foi ela que a desencadeou.  Um amigo meu pergunta se o anterior Presidente da AR, Ferro Rodrigues, teria passado incólume a crítica de "falta de imparcialidade política", se, em 2021, tivesse pedido às oposições, à esquerda e a direita do PS, para viabilizarem o orçamento do 2º Governo de A. Costa, para evitar a dissolução parlamentar que o PR já tinha anunciado na eventualidade do chumbo, como veio a suceder. Tem razão: a dualidade do comentariado nos media é, por vezes, gritante.

sábado, 8 de março de 2025

O caso Montenegro (7): A empresa "avatar"

[Fonte: aqui]
1. O Expresso de ontem volta a fazer derivar indevidamente a provável violação da exclusividade governativa pelo Primeiro-ministro, do facto de ele ter continuado a ser o dono da Spinumviva, em parceria com mulher e filhos. 

Ora, se isso bastasse, então não haveria mais nada a apurar, visto que é incontestável que a empresa foi criada por ele e que a tentativa de a transmitir à mulher é nula, sem nenhum efeito, pelo que continuou a pertencer-lhe. Mas, como tenho procurado explicar desde o início, a propriedade de uma empresa por um governante não basta, só por si, para violar a regra da exclusividade. 

Entendamo-nos, portanto: 1º - como qualquer cidadão com meios para o fazer, o PM pode ter licitamente as empresas que quiser, desde um restaurante a uma clínica, a título pessoal ou através de uma sociedade, e beneficiar dos respetivos proventos, desde que não lhe caiba a respetiva gestão; 2º - no caso da Spinumviva, porém, todos os indícios (incluindo os serviços prestados, os seus clientes, a sede no seu domicílio pessoal e o contacto dela por via do seu telefone pessoal) apontam para que tal empresa não passou de uma solução de fachada, uma ferramenta, para permitir que ele próprio continuasse a prestar os SEUS serviços profissionais aos SEUS clientes por interposta sociedade, ou seja, entre outras vantagens, para fingir uma separação pessoal em relação à sua atividade.

Em suma, não tendo nenhuma autonomia em relação ao seu fundador, a Spinumviva não era mais do que uma metamorfose na apresentação externa daquele, um "avatar" do advogado Luís Montenegro, para continuar a sua atividade profissional e beneficiar do seus proventos.

2. Há duas noções que todo o estudante de direito aprende logo no 1º ano do curso, como exemplos de "patologia jurídica": o "abuso de direito" e a "fraude à lei". O que eu defendo, face aos indícios conhecidos, é que, muito presumivelmente, a Spinumviva constitui um caso de abuso da personalidade jurídica coletiva, instrumentalizada para defraudar a regra da exclusividade do PM (além das não negligenciáveis vantagens fiscais e da possibilidade de imputação de despesas pessoais à pseudossociedade).

Recorrendo à conhecida relação "principal-agente", que é corrente na economia e na ciência política, no caso da Spinumviva (como se argumenta AQUI), o seu criador manteve-se como o "principal" da organização, sendo os seus colaboradores na prestação do serviço puros "agentes" seus (mas sem os custos da "assimetria de informação", normalmente associada a este tipo de relações, dados os conhecimentos do "principal" neste caso), enquanto os familiares não passaram de simples figurantes na encenação, sem nenhum papel na empresa.

Em suma, como venho escrevendo, tudo indica que a Spinumviva é uma ficção de sociedade comercial, sendo verdadeiramente uma longa manus ou um alter ego de Montenegro.

3. Se os indícios são fortes, a sua comprovação, porém, só pode ser conseguida através da análise aos contratos, às comunicações, à agenda e à contabilidade da suposta empresa, para verificar o seu negócio, as suas receitas (e seu destino) e suas despesas (incluindo na aquisição de bens e serviços). 

Parece óbvio que a moção de confiança precipitadamente apresentada por Montenegro - que, a ser rejeitada, levaria à dissolução parlamentar - só pode ter por motivo principal fazer caducar o inquérito parlamentar requerido pelo PS para apurar essas questões, para se furtar ao seu escrutínio.

Resta, por isso, saber se, perante a má-fé do Governo, não seria melhor para o PS, em vez de manter forçadamente a antiga posição de voto contra, optar pela abstenção, impedindo a dissolução parlamentar e permitindo manter o inquérito parlamentar, desfeiteando a manobra política do Governo.

Adenda
Esta extraordinária declaração de Luís Montenegro, de que «não fez nem mais nem menos do que faz qualquer português» é uma confissão implícita. Na verdade, como escrevi no início deste "caso", aquilo que muitos profissionais liberais fazem - que é criar empresas pessoais/familiares para prestarem os seus serviços em nome delas, serem pagos através delas e beneficiarem de redução de impostos e da imputação de despesas pessoais - podia ser feito pelo advogado Luís Montenegro, mas não podia ser continuado pelo PM, sob pena de violação da exclusividade a que está obrigado e de conflito de interesses, entre o interesse público que lhe cabe prosseguir e os interesses económicos dos clientes que lhe pagam as generosas avenças.  Ao contrário do que defende Montenegro, o PM não pode fazer o que "qualquer português" pode fazer, quanto mais não seja por uma questão de ética política, que neste caso foi manifestamente posta na gaveta.

sexta-feira, 7 de março de 2025

História constitucional (11): Nos 50 anos da Assembleia Constituinte de 1975-76


Eis o mais recente número da revista História JN, que insere, com destaque na capa,  a 1ª parte de mais um artigo de história política e constitucional da minha coautoria com o meu colega José Domingues da Universidade Lusíada / Porto, desta vez dedicado a recordar a história das nossas quatro assembleias constituintes desde a inauguração da era constitucional moderna, com a revolução liberal de 1820, estudo que se destina a assinalar os 50 anos da Assembleia Constituinte, eleita em 25 de abril de 1975 (eleições bem evocadas nesta mesma edição pelo diretor da revista, Pedro Olavo Simões).

O texto agora publicado versa sobre as duas constituintes da monarquia constitucional, ou seja, as Cortes Constituintes "vintistas", de 1821-22, que aprovaram a nossa primeira Constituição, e as Cortes Constituintes "setembristas", de 1836-38, que aprovaram a terceira Constituição. No próximo número da revista, a 2ª parte do artigo ocupa-se das duas constituintes republicanas, a de 1911, que aprovou a primeira Constituição republicana, e a de 1975-76, que aprovou a Constituição democrática vigente.

Utilizando a mesma "grelha" temática para analisar as quatro constituintes (origem, eleição, composição política, competência, procedimento constituinte, traços da respetiva Constituição), a fim de permitir uma visão comparada, o estudo regista também para a História os nomes de todos os deputados constituintes (e os círculos por que foram eleitos) nestes dois séculos de vida constitucional em Portugal.

O caso Montenegro (6): Uma provocação política

1. Ecoando a posição defendida por Montenegro, há quem entenda que o Governo precisa da confiança do Parlamento para poder continuar a governar e a executar o seu programa. 

Mas há aqui um óbvio equívoco político: no nosso sistema constitucional, os governos não precisam da confiança parlamentar para governar; só precisam de não ter a sua desconfiança (e se manifestada por maioria aboluta), o que obviamente não é mesma coisa. É esse regime de não-desconfiança - que foi uma opção constitucional deliberada (eu estive lá!) -, que permite os governos minoritários.

De resto, este Governo "passou" na AR sem nenhum voto de confiança ou de aprovação; e se tal voto tivesse existido, não teria passado. Na apresentação do Governo à AR, o líder do PS declarou então que não votava a rejeição do programa de governo (proposta por vários partidos) e que, portanto, não inviabilizava o Governo, mas advertiu enfaticamente que não votaria qualquer moção de confiança que o Governo viesse a solicitar à AR. Foi na base desse compromissso explícito que o Governo "passou", apesar de ser o mais minoritário que tivemos. E foi o mesmo espírito de compromisso do PS com a estabilidade que permitiu ao Governo passar o teste do orçamento em dezembro e, por estes dias, passar incólume as moções de censura de que foi alvo, sempre mercê da abstenção do PS.

Montenegro deve, portanto, o lugar de PM e a subsistência do Governo a esse compromisso com o PS, que este perseverou em respeitar

2. Mas é justamente esse compromisso que, menos de um ano depois, ele e o PSD agora deitam ao lixo, deslealmente, ao apresentarem uma moção de confiança e ao exigirem ao líder do PS que cruze a sua "linha vermelha" e declare, através do voto, a sua confiança no Governo. 

Montenegro não pode ignorar que o único Governo minoritário da nossa história democrática que avançou para uma moção de confiança (o I Governo de Mário Soares, em 1977), perdeu-a e viu-se demitido, pelo que não foi seguramente por acaso que nenhum dos vários governos minoritários posteriores (do PS e do PSD) repetiu a ousadia. O atual PM vai manifestamente contra a lógica e contra a história, ao desafiar a oposição a dar-lhe a confiança política, de que, aliás, não precisa (como mostrei acima), e com uma agravante em relação a 1977: Soares não apostava em eleições nem sabia antecipadamente o resultado da votação e tinha a esperança de que o PCP se abstivesse (o que não veio a acontecer), enquanto agora Montenegro posta diretamente nas eleicoes, porque sabe antecipadamente que a sua moção não vai passar. 

Ora, continuando Montenegro a denegar o esclarecimento cabal, que o PS reclama (e bem!), sobre a sua ligação efetiva à empresa "familiar" que ele criou para continuar a exercer a anterior sua atividade profissional, este pedido de confiança, que é especialmente dirigido contra o PS, a quem ele deve a investidura parlamentar, tem de ser designado como o que é: uma provocação política qualificada.

Se houvesse dúvidas, esta conduta politicamente pouco digna mostra que ele não merece mesmo a confiança que pede à oposição.

Adenda
De uma leitora atenta recebi o seguinte comentário: «A moção de confiança do PSD, para ir para eleições, é uma declaração de guerra ao PS e ao País, mas penso que o PS não tem de travar a guerra no campo que ele quer e na hora que eles desejam, sacrificando o País, mas sim no campo e no tempo mais favorável ao PS. Por isso, penso que a melhor solução não é votar contra a moção, mas sim a abstenção, que continua a não dar a confiança pedida e poupa o país a eleições, que ninguém quer. A seguir, avançar a todo o vapor para o inquérito (...) e, no final, avançar, se for caso disso, com uma moção de censura». Como já deixei entendido em nota anterior, subscrevo este argumento. O melhor modo de evitar que o PM fuja do apuramento das graves suspeitas que sobre ele impendem - que é o seu grande objetivo - é manter a AR e o Governo em funções, aliás com chumbo na asa. No fundo, votar contra a moção, indo para a dissolução parlamentar e para eleições, pode parecer politicamente mais coerente, mas é dar a Montenegro o que ele quer.

Adenda 2
Um leitor acha que Montenegro está «aterrorizado com o inquérito parlamentar às suas ligações com a sua empresa familiar», e que, por isso, mesmo que a moção de confiança não seja rejeitada, por abstenção do PS, ele irá demitir-se na mesma, para forçar a dissolução da AR. Não é de excluir tal hipótese, mas, se tal suceder, fica claro que o seu interesse não era obter a confiança política da AR, como proclamou, mas sim, mesmo, cancelar o escrutínio sobre ele. Além disso, se perdesse a moção de confiança, sendo demitido pela AR, ele sempre tenderia a imputar a responsabilidade pela crise política à oposição, e em especial ao PS, por ter recusado a confiança pedida, enquanto que se for ele próprio demitir-se para fazer dissolver o parlamento, a responsabilidade pela crise política fica inequivocamente com ele. Não é a mesma coisa, para a opinião pública e para os eleitores.

quinta-feira, 6 de março de 2025

O caso Montenegro (5): Os custos da crise política

1. A crise política levianamente precipitada por Luís Montenegro, para fugir ao inquérito parlamentar sobre a sua ligação à Spinumviva e para fazer "plebiscitar" o seu Governo, menos de um ano depois de tomar posse, em condições que julga favoráveis, não vai apenas levar à realização de novas eleições parlamentares e ao subsequente processo de formação de novo Governo, sabe-se lá qual, daqui a uns meses (como assinalei em post anterior).

Por um lado, em consequência da sua demissão e do encerramento do parlamento, o Governo vai entrar em "modo de gestão" - ficando limitado, como diz a Constituição, aos «atos estritamente necessários à gestão dos negócios públicos» (ou seja, os que sejam de todo inadiáveis), tando mais que o Governo fica obrigado a respeitar o princípio da imparcialidade eleitoral -, o que vai provocar o atraso de numerosos dossiês governativos de relevo, como assinala esta peça do Expresso.

Deixar de ter um Governo em plenitude de funções no atual contexto interno e externo, não é decididamente uma opção prudente.

2. Por outro lado, como é fácil imaginar, além dos custos diretos das eleições, no valor de várias dezenas de milhões de euros, há que contar com o impacto económico negativo que vai resultar, não somente do adiamento dessas medidas públicas, mas também da incerteza política sobre os consumidores e as empresas, adiando decisões e "esfriando" o ambiente económico, com reflexos no emprego e nos rendimentos. Por isso, o Fórum para a Competividade, embora ressalvando que os contornos da crise política «não são ainda claros», antecipa, porém, que esta «deverá arrefecer a economia, sobretudo pelo adiamento de decisões de investimento, mas provavelmente também no cumprimento das metas e marcos do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]».

Não levar em conta estes fatores negativos antes de avançar, por capricho pessoal, para uma decisão desta gravidade, que, aliás, pode não alterar nada quanto às condições de governo, tem um nome -, aventureirismo político.
[Alterada a rubrica do post]

Adenda
O candidato presidencial Marques Mendes, que tem o apoio explícito do PSD, veio declarar, com toda a razão e oportunidade, em declarações à Lusa hoje, que o «país está incrédulo com a ideia de ter eleições antecipadas, não as deseja, nem compreende a sua utilidade», salientando que ele próprio partilha dessa apreensão, pelo que apela ao Presidente da República para «fazer uma última tentativa, um último esforço, para evitar eleições, para garantir a estabilidade». O antigo líder e governante do PSD tem toda a razão quanto à insanidade da crise política, mas é de recear que a direção do seu partido tenha ensandecido politicamente e seja surda, quer à sensatez do seu alerta, quer a uma eventual intercessão de Belém.

Adenda 2
Um leitor argumenta que Montenegro não vai recuar, porque desde o princípio quis provocar eleições, aproveitanto a boa condição económica e financeira que o Governo herdou, antes que ela mude, para tentar reforçar a sua posição eleitoral, e que «só não concretizou essa intenção até agora porque o PS não lhe deu pretexto suficiente», como sucedeu na votação do orçamento. Sim, mas tomar como pretexto agora a exigência do PS de esclarecimetos que ele tem a obrigação de prestar, e não presta, é de uma enorme hipocrisia política.

Adenda 3
Um leitor pergunta se «a melhor resposta, do lado do PS não seria a abstenção - com isso bloqueando a demissão do Governo, mas sem representar qualquer legitimação pela positiva - e depois, em função do apurado na CPI (e há muito por apurar…), agir - eventualmente, via moção de censura». Se eu fosse líder do PS, consideraria seriamente essa solução, mas penso que, tendo PNS proclamado, na apresentação do Governo à AR - que o PS viabilizou, não votando a rejeição do program de governo - que Montenegro não pensasse em avançar com uma moção de confiança, pode não ter agora a flexibilidade suficiente para ignorar essa "linha vermelha". É pena, porque penso que, face à reação pública negativa da hipótese de novas eleições, essa solução permitia ao PS "sair por cima", não respondendo à provocação de Montenegro e mantendo-o sob pressão do inquérito parlamentar.