sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (21): Entre a passividade e o ativismo presidencial

 1. Merece reflexão este alerta de Pedro Adão e Silva, esta semana, na sua habitual coluna no Público, na sequência da publicação do meu livro "Que Presidente da República para Portugal?", que ele fez o favor de comentar há dias na sessão de lançamento público, em Lisboa:

«Mas esta tentação presidencialista não está nem conforme com os poderes previstos na Constituição, nem alinhada com o perfil pouco entusiasmante dos atuais candidatos. O que condenará o próximo inquilino de Belém a ser uma de duas coisas: irrelevante ou a exercer um “poder desestabilizador”, consolidando a prática de tudo comentar e exorbitar das suas funções, colidindo com as esferas de autonomia de Governo e Parlamento.»

Na verdade, sou igualmente contra um Presidente excessivo (como foi o caso de Marcelo Rebelo de Sousa) e contra o Presidente que se limitasse a fazer papel de corpo presente, como se fora um monarca puramente representativo e cerimonial, à imagem do que sucede nas monarquias constitucionais e em algumas repúblicas que as imitam nesse aspeto. Se não elegemos o PR para competir com a AR e o Governo, enquanto legislador ou governante paralelo, tampouco o elegemos para deixar na gaveta as suas funções enquanto garante do regular funcionamento das instituições, enquanto vigilante do respeito pela Constituição e enquanto moderador da conflitualidade política e dos excessos legislativos ou políticos. 

Pelo contrário, os seus poderes constitucionais são para serem usados, quando for caso disso e de forma prudente e responsável, em defesa dos valores constitucionais, da transparência e da responsabilidade política e da estabilidade política e governativa.

2. No entanto, a lógica do poder indica e a experiência comprova que o risco de excesso presidencial é muito maior do que o risco de défice ou de omissão, pelo que a principal preocupação deve ser a de cuidar das garantias contra aquele . 

As minhas teses sobre esse ponto crucial assentam em dois pontos, que não é preciso ter estudado direito constitucional para entender:

1º) - numa democracia constitucional o PR só tem os poderes enunciados na Constituição;

2º) - quando os poderes presidenciais afetarem a autonomia de outros órgãos de soberania (como sucede com o poder de dissolução ou o poder de veto legislativo), devem ser interpretados restritivamente e ser praticados com prudência e contenção, de acordo com os princípios da necesidade e da proporcionalidade. 

Sinteticamente,  como mostra a tabela abaixo, a posição do PR no nosso sistema político pode ser sumariada num conjunto de contraposições, entre o que o Presidente é ou pode fazer e o que ele não é nem pode fazer. 

É fácil ver na coluna da direita os riscos da "tentação presidencialista" que denuncio no meu livro.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Contra a tentação presidencialista (5): Um alerta pertinente

Merece ser lida (como, aliás, é usual neste autor) a coluna de hoje no Público de Pedro Adão e Silva, que ontem fez o favor de apresentar o meu livro Que Presidente da República para Portugal? na sessão de lançamento público, em Lisboa.

Eis um excerto com o argumento essencial, que regista um alerta sobre estas eleições presidenciais que tem de ser levado em conta pelos cidadãos inquietos com a saúde política da República:

«Mas esta tentação presidencialista não está nem conforme com os poderes previstos na Constituição, nem alinhada com o perfil pouco entusiasmante dos atuais candidatos. O que condenará o próximo inquilino de Belém a ser uma de duas coisas: irrelevante ou a exercer um “poder desestabilizador”, consolidando a prática de tudo comentar e exorbitar das suas funções, colidindo com as esferas de autonomia de Governo e Parlamento.

Nos próximos tempos, andaremos consumidos por pronunciamentos de candidatos, por frente-a-frentes televisivos e por análises a sondagens, mas, nos 50 anos da Constituição, constataremos que o problema é mais profundo, o que obrigará a revisitar os poderes do inquilino de Belém: clarificando-os, limitando-os e reforçando a natureza parlamentar do regime.»



sábado, 18 de outubro de 2025

Não dá para entender (41): A questão da burqa

1. Não é que não haja bons argumentos para proibir o uso da burqa em público, que aliás levaram vários países a fazê-lo, na Europa e fora dela (incluindo países muçulmanos), e justificaram a decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos de não considerar tal proibição incompatível com a Convenção.

O problema é que em Portugal se trata de responder a uma questão inexistente, não havendo notícia de uso frequente da burqa em alguma comunidade imigrante. Como mostram os dados recentes, a imigração orinária de países muçulmanos é pouco significativa, e a sua proveniência é de países onde o uso da burqa não é comum.

2. Assim sendo, a iniciativa do Chega agora aprovada na AR não passa de mais um degrau na construção de uma cruzada anti-islâmica ao serviço do discurso anti-imigração, xenófobo e islamófobo do partido populista. Por isso, é incompreensível que esta proposta, destinada a alimentar o ódio étnico e religioso, tenha colhido o pronto apoio da Iniciativa Liberal e do PSD, em mais um elo no processo de "cheguização" do centro-direita em Portugal.

Há alianças que comprometem.

Adenda
Um leitor entende que as pessoas devem ter a «liberdade de se vestir como quiserem e que a burqa só deveria ser interdita, quando forçada». Duas objeções: 1º - como todas, a liberdade no vestuário tem limites, e o rosto tapado coloca problemas de segurança e de identificação de pessoas com mandado de detenção; 2º - no caso da burqa, nunca se sabe se se trata de opção livre da mulher que o usa ou de coação familiar ou comunitária. A questão da sujeição feminina na cultura islâmica tradicional não pode ser descartada.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Contra a tentação presidencialista (3): A minha nota de apresentação


Eis um excerto da minha nota de apresentação do livro:


Adenda
O livro vai hoje para as livrarias.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Contra a tentação presidencialista (1): Um livro para um debate necessário


Este meu novo livro, com prefácio de António Costa, sai para as livrarias nesta quinta-feira, e o lançamento público, com apresentação de Pedro Adão e Silva, é na próxima terça-feira em Lisboa.

Adenda
Reportando-se a este comentário do Expresso, um leitor considera «exagerada a crítica de Costa a Marcelo». Sucede, porém, que esse comentário, a começar pelo seu título especulativo, não é uma leitura correta do prefácio do antigo Primeiro-ministro, que cuida de não emitir nenhum juízo sobre o mandato do PR cessante nem sobre nenhum episódio entre ele e o PR. No livro o encargo da crítica ao desempenho presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa recai sobre o autor do livro, e não sobre o prefaciador.

Adenda 2


segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Ainda bem! (8): "Notícias" claramente exageradas

1. Nas eleições locais de ontem (resultados AQUI) não se confirmaram os maus augúrios sobre o "declínio do PS", a que a humilhante derrota nas eleições parlamentares, sob a desastrosa liderança de Pedro Nuno Santos, tinham  dada origem no comentariado nacional.

Quer pela percentagem de votos nacional (mais de 30%, somando as coligações com pequenos partidos), quer pelo número de municípios ganhos (incluindo a conquista de cidades como Bragança, Viseu, Coimbra, Évora e Faro), o PS está de volta claramente à cena política como um dos dois grandes partidos nacionais.  A notícia da iminente "morte do PS" era manifestamente exagerada.

2. Tambem eram manifestamente exagerados os riscos de o Chega transferir para o poder local o elevado  resultado que obteve nas eleições legislativas.

Com uma susbtancial quebra eleitoral e com apenas três presidências de CM, atrás do PCP e do CDS, dificilmente poderiam ser mais modestos os ganhos da extrema-direita populista. O desaire de Ventura também é uma boa notícia.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Como era de temer (16): Sem escrúpulos

Estas eleições locais deram para mostrar Montenegro no seu pior quanto à falta escrúpulos políticos no combate eleitoral. 

Por um lado, não teve pejo político em instrumentalizar miseravelmente o projeto de orçamento para efeitos eleitorais, primeiro atrasando deliberadamente as eleições para data posterior à data normal de apresentação do orçamento e, depois, fazendo das promessas orçamentais (reais ou fictícias) uma alavanca de campanha eleitoral. Nem a oportuna advertência do PR, plenamente justificada, o levou a moderar o abuso.

Por outro lado, e mais grave, Montenegro não teve o mínimo pudor político em utilizar explicitamente a sua condição de chefe do Governo em campanha eleitoral, incluindo o anúncio de medidas governamentais em ações de campanha, confundindo abusivamente a sua condição de primeiro-ministro com a de líder partidário e ignorando a regra constitucional da isenção eleitoral dos titulares de cargos públicos, enquanto tais, nas campanhas eleitorais. 

Não me recordo de nenhum PM que tenha mostrado tão ostensivo desprezo por regras de conduta tão elementares numa democracia eleitoral.

Adenda
Um leitor comenta que, «considerando a evidente falta de cultura democrática de Montenegro, não é de admirar». Podemos não nos surpreender, mas não nos devemos conformar. Para serem "livres e justas" (free and fair) as eleições não têm de obedecer somente a regras constitucionais e legais, mas também a "convenções" e mores consensuais destinados a garantir a igualdade de armas e a lisura, sem golpes baixos, no combate eleitoral. Não há nada mais perigoso para a democracia eleitoral do que a perda de confiança na integridade do processo eleitoral.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Eleições presidenciais (16): Fora da caixa

1. Gouveia e Melo incorre num escusado excesso retórico, quando fala numa «perigosa oligarquia política» alegadamente liderada por Marques Mendes, e constituída por uma «casta política» que se julga «dona da democracia»

Mas tem toda a razão quando denuncia a tentativa - ensaiada por uma parte do comentariado e pelos candidatos oriundos dos partidos, em particular por Marques Mendes - de lhe retirar legitimidade política para ser Presidente, seja pela sua origem militar, seja pelo facto de não ter carreira nem experiênca política. 

Na verdade, o cargo presidencial não está vedado a nenhuma categoria de cidadãos nem é reserva dos diplomados em prática política, com exclusão dos "leigos".

2. A meu ver, para desempenhar bem as funções que incumbem ao PR no nosso sistema constitucional - de representação institucional, de moderação da conflitualidade política e de garantia do regular funcionamento das instituições - a carreira militar não é um handicap e a experiência política, embora podendo ser uma mais-valia, não é seguramente uma condição necessária.

Mais importantes do que isso para a magistratura presidencial são seguramente cinco outros requisitos: (i) compromisso incondicional com os valores constitucionais (democracia, Estado de direito, Estado social, autonomia local e regional, etc.); (ii) perceção clara do papel do Presidente no sistema constitucional de separação de poderes, especialmente quanto aos limites dos seus poderes; (iii) estrita imparcialidade partidária, como representante unitário de toda a coletividade nacional; (iv) adesão firme ao princípio republicano da separação entre interesse público e interesses particulares ou de grupo; (v) prudência, ponderação, recato institucional e elevação nas suas decisões e declarações, qualidades que devem ser timbre dos inquilinos de Belém.

Não vejo porque é que Gouveia e Melo há de ser excluído à partida de fazer prova, tal como os demais candidatos, de preenchimento destes requisitos.

Adenda
Um leitor manifesta-se surpreendido por eu «apoiar GM, quando há um candidato do PS», mas há aí um óbvio equívoco: 1º - não declarei nenhum apoio a GM (cujas posições, aliás, já critiquei, duas vezes, AQUI e AQUI) e apenas contestei a sua exclusão liminar da competição, como querem alguns; 2º - não há um candidato do PS, mas sim provavelmente um candidato apoiado pelo PS, apoio que, porém, não será vinculativo, pois nas eleições presidenciais não há candidatos partidários; 3º - tirando os dois candidatos que já excluí, por causa das suas posições (AQUI e AQUI), todos os outros se mantêm em prova, até porque tudo indica que vai haver uma segunda volta. O caminho para Belém ainda é longo.

Um pouco mais de coerência (4): Quando nos toca também

Montenegro tem toda a razão para protestar contra a notícia filtrada de dentro do Ministério Público, em plena campanha eleitoral para as eleições locais, segundo a qual os investidores estariam inclinados a propor a abertura de inquérito-crime contra ele no caso Spinumviva, a sua empresa pessoal.

Só que, quando os alvos dos abusos do Ministério Público e da instrumentalização política da investigação penal são outros, concretamente do PS, nunca o vimos protestar, nem a ele nem ao comentariado afeto à direita. Pelo contrário, o que vimos foi aproveitarem-se oportunisticamwente dessas "notícias" para combate político de baixo nível -, o que o PS, felizmente, não está a reciprocar.

É de esperar que aprenda a lição e tire as devidas consequências!

Adenda
Um leitor não vê «como é que se pode evitar o inquérito a Montenegro». Eu também acho isso, tais são os indícios de conduta delituosa de Montenegro, como tenho defendido desde o início (por exemplo, AQUI e AQUI). O que julgo, porém, é que o Ministério Público não pode fazer aquele anúncio de forma esconsa e no meio de uma campanha eleitoral, como fez.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Não concordo (52): Abandono de cargo público

1. Discordo desta decisão de um juiz (e vice-presidente) do Tribunal Constitucional, cujo mandato terminou em julho, de "renunciar ao mandato", a fim de deixar o exercício do cargo, antes de ser devidamente substituído.

Em primeiro lugar, a lei estabelece explicitamente que os juízes do TC só «cessam funções com a posse do juiz designado para ocupar o respetivo lugar», e não exceciona o caso de renúncia (de resto, não faz sentido renunciar a um mandato que já terminou, estando em "prorrogação"). Aliás, defendo há muito que a prorogatio de cargos públicos constitui um princípio constitucional geral e não apenas uma obrigação legal pontual, quando expressamente estabelecida, como é o caso.

Em segundo lugar, sempre entendi que, por uma questão de responsabilidade republicana, quem aceita um cargo público de duração temporária, deve estar preparado para continuar no exercício de funções para além do termo do mandato, enquanto não for substituído.

2. Acresce que, por propósito político deliberado desde a sua origem na revisão constitucional de 1982 (eu estive lá!), no sentido de fundamentar a legitimidade democrática do Tribunal Constitucional, a sua composição dá expressão equilibrada às principais correntes ou "sensibilidades" constitucionais, que podem divergir na interpretação do texto constitucional e gerar decisões por maioria tangencial em litígios constitucionais mais sensíveis político-doutrinariamente.

Por isso, ao deixar o cargo antes de ser substituído por um juiz da mesma sensibilidade constitucional, o referido juiz abre uma vaga no Tribunal que pode causar um desequilíbrio no statu quo quanto a esse aspeto crucial do funcionamento do colégio de juízes, podendo originar inoportunas tensões internas e indesejáveis acusações externas quanto à autoridade pública das suas decisões.

Adenda
Um leitor discorda dessa obrigação, que equipara a «trabalho forçado», mas não tem razão, pois: (i) ninguém é obrigado a aceitar cargos públicos; (ii) quem aceita exercê-los, aceita as condições legais do seu exercício, incluindo a prorrogação até à substituição; (iii) pelo que a cessação de atividade antes disso constitui violação da obrigação livremente assumida.

Adenda 2
Em sentido inverso, outro leitor defende que quem abandona ilicitamente o exercício de um cargo público, deveria «ficar impedido de desempenhar qualquer outro durante um período prolongado de tempo, por motivo de irresponsabilidade cívica». Concordando com o argumento, entendo que uma tal solução carece de credencial constitucional -, o que não é o caso.

Adenda 3
O mesmo leitor, em resposta, pergunta se o caso «não configura o crime de abandono de funções previsto e punido no Código Penal» (art. 385º). Entendo que não: mesmo que a noção de "funcionário" da lei penal pudesse compreender os titulares de cargos públicos, o referido tipo penal exige a «intenção de impedir ou de interromper o serviço público», o que não é manifestamente o caso. Resta a responsabilidade disciplinar e a censura pública.

Adenda 4
Uma leitora observa que o encargo de continuar em funções para além do termo do mandato, sem limite de tempo, «pode tornar-se excessivo, pela insegurança que cria, inibindo muitos candidatos de aceitarem o lugar». Tem razão: se perdurarem e se multiplicarem os impasses na AR quanto à designação de novos titulares deste e de outros cargos públicos, há que equacionar uma solução razoável.

sábado, 20 de setembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (19): Obviamente excluído à partida

1. Para excluir à partida o voto de qualquer cidadão minimamente sensato no líder do Chega nas eleições presidenciais - a que acabou por candidatar-se, alegadamente a contragosto - não é preciso sequer invocar as suas ideias caraterizadamente nacionalistas e reacionárias, nem o seu desprezo pelas instituições e pelo regime democrático-constitucional, nem o seu estilo arrogante, mentiroso, sectário e provocador. 

Na verdade, basta, em primeiro lugar, o facto de se candidatar à presidência enquanto líder partidário, sem sequer suspender o seu mandato - ao arrepio da natureza apartidária das candidaturas presidenciais e da magistratura presidencial (como tenho sublinhado, por exemplo AQUI e AQUI ) - e, em segundo lugar, a sua conceção autoritária do mandato presidencial, à margem da Constituição, com manifesto desprezo da separação de poderes e da autonomia do Governo na condução da política nacional, como tem sido observado (por exemplo, AQUI).

2. Sem excluir de todo em todo a hipótese de ele poder chegar à 2ª volta, dada a multiplicidade de candidaturas - nenhuma delas com destacado ascendente à partida -, não creio que haja sério risco de ele vir a ser eleito.

Com efeito, não se afigura provável que ele pudesse ir muito além do eleitorado do Chega, dada a sua elevada taxa de rejeição pessoal no restante eleitorado, sendo de esperar que, naquela hipótese, houvesse concentração de votos no outro candidato que chegasse à 2ª volta, qualquer que ele fosse, como sucedeu em França em 2002 na eleição de Chirac contra Le Pen.

Na verdade, embora o PR não tenha em Portugal os poderes do Presidente francês, nada garante (pelo contrário!) que ele respeitasse os limites constitucionais, o que seria tanto mais grave quanto é certo que entre nós o PR não é politicamente responsável no exercício do seu mandato, por mais arbitrário que seja o seu desempenho, nem os seus atos são suscetíveis de fiscalização judicial, por mais atentatórios da Constituição que sejam, pelo que ele constituiria um gravíssimo perigo para o regime democrático-constitucional.

3. A CRP pressupõe um Presidente naturalmente disposto a respeitar, por convicção e responsabilidade republicana, a Constituição e os limites dos seus poderes, sem necessidade de garantias, não tendo os constituintes de 1976 configurado a hipótese de um inquilino de Belém nos antípodas desse modelo.

Sendo evidente, porém, o propósito explícito de chefe do Chega de estoirar com o sistema constitucional, o que faria aplicadamente se lá entrasse, constitui obrigação de todas as forças políticas do "arco constitucional" e de todos os cidadãos que se identificam com elas de fechar bem a porta à sua voracidade destrutiva.

Adenda
Um leitor argumenta que o PR «pode ser julgado por crimes praticados no exercício de funções», sendo destituído em caso de condenação. É verdade, mas para rebentar com o sistema constitucional não seria  preciso cometer nenhum crime, bastando bombas políticas, como, por exemplo, não promulgar leis, usando o "veto de gaveta", nomear um Governo sem apoio parlamentar e, depois de rejeitado na AR, mantê-lo em funções de gestão indefinidamente, demitir o Governo e dissolver a AR por capricho, etc.
Como a Constituição não tem salvaguardas contra candidatos a ditador em Belém, o único seguro de vida do regime constitucional é não os deixar lá entrar.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Corporativismo (60): Abuso de poder

1. Como se pode ver no seu website, a Ordem dos Psicólogos veio pronunciar-se sobre a proposta de reforma laboral do Governo, criticando várias soluções e avançando com propostas de correção, como se fora um sindicato.

Ora, as questões laborais não são da competência das ordens profissionais, que não representam nem trabalhadores nem entidades patronais, e cujas atribuições oficiais consistem somente na representação oficial da profissão, independentemente da condição laboral dos profissionais, e na supervisão e disciplina do seu exercício.

Na verdade, ao contrário das entidades privadas, as ordens profissionais, como entidades públicas que são, só têm as atribuições e os poderes conferidos por lei.

2. Infelizmente, a OP não é a primeira ordem a extravazar das suas missões estatutárias, havendo vários precedentes de outras no mesmo sentido. Mas, além de dever desconsiderar estas intervenções fora do seu mandato legislativo, a tutela governamental devia advertir explicitamente a OP e as demais sobre os limites da sua ação.

É tempo de o Governo, nas suas funções de tutela, e a AR, na sua missão de escrutínio parlamentar da administração pública, deixarem de continuar a tolerar condescendentemente estes abusos das ordens profissionais, que nem por serem recorrentes se podem tornar desculpáveis.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Quando os tribunais erram (4): Desvalorizar os ataques à integridade moral

1. A condenação penal dos "negacionistas" das vacinas por injúrias pessoais a Ferro Rodrigues (nessa altura, presidente da AR) e a Gouveia e Melo (nessa altura, comissário para a campanha anti-Covid) tem um aspeto positivo e outro assaz negativo, que esvazia o primeiro.

O primeiro consiste em que essa condenação judicial, por acusação do Ministério Público, mostra que, rejeitando as conceções absolutistas da liberdade de expressão contra os titulares de cargos políticos, esta tem como limite a integridade moral dos visados, pelo que os ataques pessoais à sua honra não podem gozar de imunidade penal, só por se tratar de políticos. O aspeto negativo está na manifesta leniência da pena aplicada (multas de muito baixo montante), o que, além de nem servir de dissuasor de crimes semelhantes, revela que, no entender do tribunal, embora a honra dos visados mereça proteção penal, ela não vale muito, pelo que se justifica uma boa atenuante quanto à sanção.

Não sendo imunidade, fica lá perto: os grupos radicais não têm razão para se preocupar com esta sentença.

2.  Ora, justamente por causa do agravamento do extremismo agressivo, é tempo de a justiça penal passar a dar o peso devido a dois aspetos que têm vindo a ser indevidamente secundarizados.

Em 1º lugar, a integridade moral das pessoas não é menos valiosa nem é menos digna de proteção do que a sua integridade física - bastando para isso ler a Constituição -, pelo que não pode comprender-se que um grave insulto ao presidente da AR, que é a 2ª figura no protocolo do Estado, seja menos grave do que puxar os cabelos a uma agente da PSP (crime que no caso foi punido com pena de prisão, embora suspensa). 

Em 2º lugar, caso sejam alvo de ataques à sua honra pessoal, os titulares de cargos públicos não merecem menos proteção, só por o serem, como parece resultar desta sentença. Pelo contrário, o facto de serem titulares de cargos públicos deveria constituir uma agravante, porque as injúrias públicas contra eles também lesam a autoridade e o respeito pela democracia representativa de que elas são servidores.

É também a honra da República que fica lesada.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Rasto no tempo (4): 50 anos depois

1. Segundo esta notícia, que entretanto confirmei, conto-me entre um pequeno grupo de cidadãos portugueses a serem homenageados, junto com muitos angolanos, pelo presidente da República de Angola, no final deste mês, pela sua contribuição para a independência do País, há 50 anos.

Apesar de as minhas conhecidas objeções pessoais a distinções honoríficas me impedirem de receber a condecoração, não quero deixar de dizer que me sinto muito grato e feliz por esta lembrança da minha pequena contribuição para essa efeméride histórica na vida do jovem País, seguramente bem modesta, quando comparada com a dos demais portugueses distinguidos (todos infelizmente já falecidos), cuja homenagem póstuma por parte de Luanda considero inteiramente merecida

2. A independência de Angola, nas condições difíceis em que se concretizou, em 1975, sob a égide do MPLA, também foi uma causa de muitos portugueses, entre os quais me conto. Orgulho-me disso!

Parabéns Angola e longa vida, em paz e prosperidade!

Adenda
Minha resposta a uma senhora que, no Linkedin (onde publiquei um excerto deste post), me acusou de ter apoiado a «humilhante descolonização» de Angola: «"Humilhante" e estúpida foi a opção da ditadura - que a Senhora parece apoiar - por uma querra colonial de 12 anos, que vitimou tanta gente (africanos e portugueses), isolou internacionalmente o país e tornou inevitável o traumático desenlace de 1975, em vez de uma aposta numa transição suave e pacífica para a independência, como fizeram atempadamente outras potências coloniais (salvo a França na Argélia, com os mesmos resultados trágicos)».

terça-feira, 16 de setembro de 2025

O que o Presidente não deve fazer (58): Insistir no erro

1. Insistindo na sua veste de comentador político, Marcelo Rebelo de Sousa anuncia ir fazer proximamente um juízo público sobre a Ministra da Saúde

Ora, num Estado constitucional os órgãos do poder político só tem os poderes enunciados na Constituição, e entre os poderes do Presidente não consta o de comentar nem de avaliar publicamente o desempenho político do Governo ou dos seus membros (salvo para justificar o eventual recurso a um dos seus poderes extremos, como seria a dissolução da AR ou a demissão do próprio Governo, o que não é seguramente o caso).

O Presidente não é eleito como comentador-mor da República.

2. Como tenho escrito repetidamente, o Governo não depende da confiança política do PR nem está sujeito à sua tutela política, pelo que a avaliação política da sua atividade só cabe aos partidos da oposição (na AR e fora dela), aos comentadores e aos cidadãos e grupos da sociedade civil. O PR não se encontra em Belém em nenhuma dessas capacidades. Como cidadão crítico, protesto contra esta "concorrência desleal" de Belém.

É pena que até o fim do seu mandato, daqui a poucos meses, MRS não se tenha dado conta de que estas incursões em seara alheia não atentam somente contra a Constituição - que jurou cumprir e fazer cumprir -, mas também que a sua banalização lhes retira eficácia e degrada a imagem do próprio Presidente, pondo em causa a integridade do cargo e expondo a sua impotência .

Adenda
Uma leitora pergunta se, «no caso de chegar a um juízo muito negativo sobre a Ministra, MRS virá defender a demissão dela, como fez quanto ao ministro Galamba, no último Governo PS». Creio que a questão não se vai colocar, porque a condição posta - o "mau juízo" presidencial sobre a ministra - não se vai verificar. Amigo não ataca amigo... 

Adenda 2
Um leitor pergunta se o Presidente "não pode formar uma opinião negativa sobre um ministro". Pode,  sem dúvida, e também pode transmiti-la ao PM, nos seus encontros semanais em Belém, mas não deve exprimi-la em público, condicionando o chefe do Governo na sua liberdade de formar e gerir a sua equipa governativa, assumindo a responsabilidade política pelo seu desempenho, que só a ele cabe. O PR não é um "treinador de bancada".

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Aplauso (41): Pela valorização das assembleias municipais

1. Tendo eu defendido há pouco tempo (AQUI), a reforma do sistema de governo municipal - passando as câmaras municipais a ser eleitas pelas assembleias municipais (salvo o presidente, que seria o primeiro nome da lista mais votada para o parlamento municipal) e a serem politicamente responsáveis perante elas -, apraz-me saber que essa ideia é perfilhada pelo líder do PS, que a vai propor como parte de uma reforma mais ampla do poder local.

Só é de esperar que esta proposta venha a colher o amplo apoio partidário necessário na AR (maioria de 2/3), para ver finalmente o afastamento de uma das soluções politicamente mais desequilibradas do regime constitucional originário do poder local - de que as assembleias muncipais foram a principal vítima -, que a revisão constitucional de 1997 veio permitir corrigir, mas que inércia política e legislativa deixou arrastar até ao presente.

2. Não tem razão o jornalista que assina a referida notícia no Expresso, quando diz que essa reforma visa «retirar a oposição dos executivos municipais, tornando-os politicamente monocolores». Se a primeira parte é verdadeira - pois o lugar da oposição é obviamente na assembleia municipal, onde deve gozar dos meios apropriados para isso, que hoje são insuficientes -, já assim não sucede com a 2ª parte, sobre executivos politicamente «monocolores»

Na verdade, isso só será assim, se o partido vencedor tiver maioria absoluta no parlamento municipal, pois, na falta dela, terá de procurar o apoio de outro(s) partido(s), através de acordos de coligação governativa, ou, pelo menos, de apoio político na AM. Ora, com a crescente fragmentação da representação política, também ao nível local (que as candidaturas independentes aumentam), as situações de maioria absoluta tenderão a diminuir, obrigando a procurar soluções de governo municipal negociadas às claras com outros partidos (em vez dos atuais expedientes de "compra" de vereadores da oposição...). 

Com o que ganha a democracia local e, em especial, as assembleias municipais.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Eleições presidenciais 2026 (18): Nem no Estado Novo!

1. O candidato presidencial Cotrim de Figueiredo, oriundo da IL, veio defender o introdução de veto legislativo absoluto do PR - portanto, sem possibilidade de ser superado pela AR por maioria qualificada, como hoje sucede -, em relação a certas leis, que não especificou. 

Seja como for, trata-se de uma ideia peregrina, absolutamente inadmissivel. Na nossa história constitucional desde 1822, que compreende seis constituições, só havia veto absoluto na Carta Constitucional, mas aí o rei era cotitular do poder legislativo, através da sanção régia. Nenhuma outra Constituição adotou essa ideia autoritária, que afronta o princípio essencial do constitucionalismo, que é a separação de poderes e a soberania legislativa do parlamento. 

Nem a Constituição autoritária, antidemocrática e antiparlamentar do Estado Novo ia por aí!

2.  Tal como nas eleições legislativas, também nas eleições parlamentares é mais fácil saber em que não votamos do que em quem votamos no final. 

Com esta insólita proposta de impensável retrocesso constitucional -  que, além de uma lamentável incultura constitucional, revela um inadmissível projeto de autoritarismo presidencial, aliás indigno de um liberal-democrata -, Cotrim de Figueiredo merece ser riscado à partida na disputa presidencial de janeiro do ano que vem. Menos um - RIP...

Ditadores legislativos em Belém, não - definitivamente!

terça-feira, 22 de julho de 2025

Concordo (29): Reforma do governo municipal

 1. Aplauso para esta proposta da Associação das Assembleias Municipais, que vem defender a reforma do sistema de governo municipal, no sentido de o equiparar ao sistema de governo das freguesias. As principais alterações seriam as seguintes

- deixaria de haver eleição direta da câmara municipal (CM);
- a CM seria automaticamente presidida pelo primeiro nome da lista vencedora das eleições para assembleia municipal (AM);
- a equipa de vereadores seria eleita pela AM, sob proposta do presidente da CM.

Com esta proposta, as assembleias municipais subscritoras retomam a ideia de aproveitar a faculdade aberta pela revisão constitucional de 1997, que veio permitir duas alterações de fundo no sistema de governo municipal: (i) o afastamento da eleição direta da CM e (ii) a distinção, dentro das AM, entre os poderes dos deputados municipais diretamente eleitos e os presidentes de junta de freguesia que também as integram.

O que é estranho é que tenham passado quase trinta anos sem que essa possibilidade de reforma de um sistema de governo municipal incongruente e disfuncional tenha sido concretizada.

2. Por coincidência, publiquei há pouco tempo na novel Revista dos Municípios o texto de uma palestra minha em Guimarães, há algumas semanas, intitulado «Pelo resgate das assembleias municipais como genuínos parlamentos locais», onde defendo e justifico, doutrinária e politicamente, posições semelhantes.

Com esta reforma, a legitimidade política da CM passaria a decorrer da eleição do parlamento municipal (como é a regra em todos os níveis do poder político no nosso país), acabaria a bizarra situação atual de coabitação obrigatória do partido (ou coligação ) de governo e da oposição na CM, cessaria a existência de executivos municipais politicamente minoritários, tanto na própria CM como na AM, a CM passaria a ser politicamente responsável perante a AM, como impõe desde sempre a Constituição, e a votação da CM e das moções de censura na AM seria um poder reservado aos deputados municipais diretamente eleitos, com exclusão dos presidentes de junta de freguesia. 

Resta saber se esta mudança do sistema de governo municipal, há muito devida, mas que carece de um maioria de 2/3 na AR, desta vez vai para a frente.»

domingo, 13 de julho de 2025

Privilégios (23): O que é demais é demais

Um dos sindicatos médicos está a reivindicar a declaração da profissão médica como "profissão de desgaste rápido" - aparentemente só no SNS... -, para poderem beneficiar dos benefícios correspondentes, em termos de mais férias e de aposentação mais rápida. 

Face a esta provocação sindical de baixo nível, eu penso que o Governo devia responder com outra provocação, ou seja, responder sim, com quatro condições, sob pena de perda desse regime: (i) adesão ao regime de "dedicação plena"; (ii) sujeição a controlo estrito da assiduidade e da pontualidade ao serviço; (iii) submissão a níveis exigentes de desempenho profissional, em termos de serviços prestados; e (iv) incompatibilidade com a acumulação profissional com o setor privado, antes e depois da aposentação.

Duvido que algum dos subscritores ou apoiantes da referida reivindicação aceitasse este repto.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Memórias acidentais (27): Luanda, 1991

 


1. Estas duas fotos da Galeria do Constitutionalismo Angolano, do Tribunal Constitucional, em Luanda, foram-me enviadas por uma amiga que recentemente por lá passou e são testemunho da minha intervenção (graciosa), junto com o meu colega e amigo J. J. Gomes Canotilho, na transição democrática angolana em 1991-92, encerrando o período da "democracia popular" e do monopólio político do MPLA, que durava desde a independência.

Apraz-me recordar esses dias intensos em Luanda, as sessões de trabalho na Assembleia, as reuniões com o partido, o decisivo encontro com o Presidente José Eduardo dos Santos e, à margem, o reencontro com antigos condiscípulos de Coimbra.

Não voltei a Luanda desde então nem revisitei os meus papéis relativos a essa missão, pelo que foi com alegria e alguma emoção que recebi estas fotos e recordei esse meu contributo pessoal para a história política e constitucional angolana.

2. Não foi o único processo de transição democrática em que participei por essa altura, valendo-me da minha própria experiência e da minha reflexão sobre a anterior transição democrático-constitucional em Portugal. 

No ano anterior tinha estado em Cabo Verde, no início do seu processo de transição, contribuindo para a revisão da Constituição e a elaboração das principais leis políticas (partidos políticos, eleições, etc.) e haveria de ir, pouco depois, à África do Sul, a um seminário de vários dias promovido pelo ANC sobre a futura Constituição democrática do País após o fim do regime do apartheid, que terminou com um jantar surpresa com o próprio Nelson Mandela (pouco antes libertado da sua prolongada prisão em Roben Island), um dos momentos mais emocionantes da minha vida política.

Além da satisfação pessoal pela minha contribuição para a fundação de regimes democráticos bem-sucedidos, que passaram o teste do tempo, foram especialmente gratificantes para mim os encontros com os líderes políticos, como Pedro Pires, José Eduardo e Nelson Mandela, cuja determinação foi decisiva para fazer avançar a complexa transição política em países sem nenhuma tradição nem cultura de democracia constitucional.

Adenda
Um leitor atento e informado nota que 1991 foi o ano de publicação da seminal obra de Samuel Huntington, "The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century", justamente sobre o movimento de democratização no último quartel do século passado, iniciado em Portugal com a Revolução de 25 de Abril de 1974. Alegra-me ter dado uma pequena ajuda nos três países africanos que referi.

Adenda 2
Importa acrescentar que a minha intervenção em processos de edificação de democracias constitucionais não ficou por aqui, pois no final dessa década de 90 do século passado, como membro da "Comissão de Veneza" do Conselho da Europa, vim a participar também na transição democrática de alguns países do antigo bloco soviético, tendo-me deslocado, por exemplo, à Arménia

domingo, 6 de julho de 2025

Não é a mesma coisa (4): Pede-se mais ao Presidente

1. Deixa muito a desejar a posição pública do PR sobre as propostas governamentais de subversão das leis da nacionalidade.

Na verdade, embora pré-anunciando que vai recorrer à fiscalização preventiva da constitucionalidade - o que, a meu ver, será imperioso, dadas as flagrantes inconstitucionalidades em que algumas daquelas soluções incorrem, a começar pela discriminação entre nacionais em matéria de punição penal (como apontei AQUI) -, o Presidente não exprimiu, porém, nenhuma outra reserva crítica sobre a reforma, em desvio à sua tradicional loquacidade em situações semelhantes, deixando entender, portanto, que não vai utilizar o veto político, apesar de ela ser manifestamente inspirada pelo Chega e de pôr em causa uma longa evolução, em geral consensual entre o PS e o PSD, sobre o regime da nacionalidade, no sentido humanista do alargamento do seu acesso pelos imigrantes e sua descendência, a maior parte deles com origem em países de língua portuguesa ou noutros países europeus.

Ora, a necessária correção das inconstitucionalidades não absolve o pecado político capital desta reversão da lei da nacionalidade, que o Presidente da República não devia coonestar, abdicando do veto político, que neste caso (ao contrário de outros...) é plenamente justificável.

2. Sucede, aliás, que a lei da nacionalidade não é uma lei qualquer, não sendo por acaso que ela integra a seleta categoria constitucional das "lei orgânicas", sujeitas a um regime mais exigente, quer quanto ao procedimento e à maioria parlamentar exigida para a sua aprovação, quer quanto ao regime do eventual veto político, pois a AR só pode superá-lo por maioria de 2/3.

Sendo, no fundo, uma lei paraconstitucional - por definir um dos três elementos clássicos da noção de Estado (território, população e soberania), que foi indevidamente deixado omisso na CRP de 1976 -, a revisão da lei da nacionalidade sob inspiração do Chega e implementada pelo Governo, à margem do PS (que obviamente a não pode aprovar), traduz-se efetivamente na entrada do partido nacionalista na (re)definição de aspetos básicos do regime político.

Não é possível ignorar o significado político-constitucional profundo desta operação, sem pré-aviso,  de "cheguização" política e doutrinária do PSD, enterrando o «não-é-não» da campanha eleitoral e apadrinhando a entrada da extrema-direita nacionalista e populista no "arco cosntitucional" material nacional. Também por isso, para testar a consistência da nova supermaioria de direita sob a égide do Chega e sublinhar a gravidade da conversão política do PSD, justificava-se o veto político.

sábado, 5 de julho de 2025

Bloquices (27): Extremismo gera extremismo

Tão estúpida, politicamente, como a proposta do Governo de alargar de um para três anos o requisito de residência para conferir a nacionalidade portuguesa aos filhos de cidadãs estrangeiras nascidos em Portugal é a proposta de Bloco, no sentido oposto, de dispensar qualquer requisito de residência, conferindo a nacionalidade a qualquer criança nascida no País, mesmo sem qualquer vínculo da progenitora ao país, abrindo as portas à corrida de estrangeiras aos partos em Portugal, só para efeitos de aquisição de nacionalidade portuguesa (e de cidadania europeia). 

O extremismo retrógrado do Governo, adotando a postura reacionária do Chega contra a integração dos imigrantes, não justifica o extremismo pseudoprogressista do Bloco. Verdadeiramente irresponsável.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Eleições presidenciais 2026 (17): O candidato Marcelo II?

1. Em declarações a propósito da anunciada queixa de José Sócrates ao TEDH, divulgadas pelo jornal Público, o candidato presidencial Luís Marques Mendes, considerando que a reforma da Justiça é «cada vez mais necessária e urgente», anunciou que ele «enquanto Presidente da República, colocarei esta prioridade na agenda pública, política e mediática» e que ela «será uma das minhas causas enquanto Presidente da República, o que obriga a fazer pontes entre quem está no Governo e partidos da oposição», avançando também com propostas concretas, incluindo o fim dos "megaprocessos" e a concessão de mais poderes aos juízes na condução dos processos.

Sem dúvida, o caso Sócrates pode ser mais uma boa razão a favor da necessidade de uma reforma da justiça (e não apenas quanto à morosidade desta...). Mas, no nosso sistema de governo, a quem compete dar prioridade à reforma da justiça (que se tornou praticamente consensual) e definir o seu conteúdo (que é menos consensual) é ao Governo e à AR, e não ao Presidente da República, que constitucionalmente não é um presidente-governante, mas sim um garante das regras do jogo político, pelo que não pode ser ele próprio um agente político, sob pena de ser ele mesmo a subverter as regras

Não há nada mais perturbador para a compreensão do sistema político pelo cidadão comum do que ver o PR a competir com o PM na marcação da agenda política, que constitucionalmente é matéria exclusiva do segundo.

2. De resto, não vejo nenhuma necessidade destas tiradas de protagonismo "macho" dos candidatos presidenciais, que têm o "pequeno" defeito de não terem nenhum cabimento nas funções e nos poderes constitucionais do Presidente e que, portanto, acabam como proclamações vazias para impressionar eleitores incautos ou como fatores de envenenamento das relações políticas entre os três órgaos políticos da República.

Na verdade, o PR pode intervir na decisão sobre reformas políticas de três modos não despiciendos, embora menos espetaculares e menos intrusivos: (i) a título de aconselhamento discreto do Governo e dos partidos de oposição, em Belém; (ii) a título de "facilitador" entre Governo e oposição, a pedido destes, na negociação dessas reformas; (iii) a título de apoio público ao lançamento de tais reformas.

Tudo seria diferente, se o candidato tivesse dito o seguinte: «Considerando o largo consenso existente quanto à necessidade de reforma da justiça, cumpre-me anunciar que, se for eleito, o Governo e a AR podem contar com o apoio do Presidente para a realizar, naquilo que de mim depender».

Ou seja: o PR não está impedido de ter ideias sobre reformas, desde logo para efeito do seu poder de aconselhamento ao Governo. O que não pode, como neste caso, é definir à partida a prioridade e o  conteúdo de tais reformas, usurpando a competência constitucional da AR e do Governo, e depois "forçar" o Governo e a oposição a um entendimento para as realizar. O PR não tem nenhum poder de tutela política, muito menos de "superintendência", sobre o Governo.

No nosso sistema político-constitucional, em que a condução da política geral do país cabe ao Governo, as reformas políticas não podem ser encomendadas nem comandadas a partir de Belém, nem a AR e o Governo estão submetidos às suas orientações políticas. E, por isso, os candidatos presidenciais não podem apresentar-se, como neste caso, como se fossem candidatos a primeiro-ministro ou a superintendentes de primeiro-ministro.

3. Não deixa de surpreender que Luís Marques Mendes, que começou por marcar algumas claras diferenças em relação ao omnímodo estilo presidencial de Marcelo de Rebelo de Sousa, tenha vindo a adotar crescentemente um entendimento cada vez mais intervencionista do cargo presidencial, que começou pela ideia das suas "causas presidenciais" - como se o Presidente pudesse ter, no exercício do seu mandato, outras causas que não as causas constitucionais -, para terminar neste propósito extremo de dar «prioridade pública, política e mediática» a uma certa reforma política, que desafia a prática expansionista do atual inquilino de Belém. 

Numa expressão do seu entendimento assaz amplo dos poderes presidenciais, Jorge Sampaio substituiu a contida fórmula de Mário Soares, "magistratura de influência", pela de "magistratura de influência e de iniciativa", que dava cobertura à sua ideia de Belém colocar temas e propostas na agenda política. Ora, parece claro que, desta vez, Marques Mendes se propõe ir mais longe, no sentido de uma "magistratura de ingerência", não se limitando a colocar reformas na agenda pública, mas também conferir-lhe prioridade política e definir o seu conteúdo, desafiando a autonomia política do Governo e o seu poder exclusivo na condução da política do país.

Decididamente, a "tentação presidencialista" pode dar a volta à cabeça dos candidatos, mesmo dos aparentemente mais sensatos.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Como era de temer (15): Receita para a confusão

1. Segundo esta notícia do Público, os politécnicos de Leiria e do Porto querem ser convertidos em universidades, mudando de ramo no "sistema binário" do ensino superior vigente entre nós, argumentando que já ministram o número de mestrados e doutoramentos previstos na lei para as universidades. 

Mas é evidente que essa pretensão não pode ser satisfeita, pela simples razão de que no sistema em vigor a diferença entre o ensino universitário e o ensino politécnico não depende dos graus académicos ministrados, mas sim do tipo e áreas de ensino e da vocação de cada instituição. Por isso, a lei não contempla tal hipótese de requalificação administrativa de uma instituição de ensino superior, pelo que seria ilegal.

2. Espero bem que a revisão do RJIES - que ficou pelo caminho com a interrupção da legislatura passada, mas que provavelmente vai ser retomada pelo Governo -  não venha a alterar a lei nesse ponto, rejeitando essa receita magna para a grande confusão no ensino superior.  

De qualquer modo, enquanto a lei for o que é, aquela reivindicação só pode ter uma resposta: rejeição liminar.

Adenda
Um leitor pergunta se não foi já aprovada a designação de "universidades politécnicas". Essa era uma proposta da revisão do RJIES, que aplicava ao ensino politécnico a distinção entre "institutos politécnicos" e "universidades politécnicas", paralela à que hoje existe para o ensino universitário (entre "institutos universitários" e "universidades"), tendo em conta o número de áreas lecionadas. Mas não é isso que estes dois IP pretendem, mas sim ser transferidos do ensino politécnico para o ensino universitário, ou seja, mudarem de "campeonato" no ensino superior, o que o RJIES não permite e que espero que não venha a permitir.

domingo, 29 de junho de 2025

Concordo (28): Contra a fuga ao fisco

Concordo com mais este plano governamental de ataque à fraude e à evasão fiscal e, além dos suspeitos empresariais habituais, sugiro quatro áreas a serem especialmente consideradas, onde se esvaem muitos milhões de receita fiscal, em particular em IVA e em IRS ou IRC:

- a enorme percentagem de arrendamentos não declarados;
- o setor dos serviços pessoais e domésticos, onde julgo que é pequena a percentagem de rendimentos declarados;
-  o setor dos restaurantes, bares e estabelecimentos similares, onde é percetivel uma elevada evasão; 
- o abuso de personalidade coletiva (pseudoempresas unipessoais ou familiares) como expediente de fuga ao fisco, em que incorre um bom número de profissionais liberais (advogados, médicos, etc.).

Tenho sempre a sensação de que, quanto maior for o número dos que fogem ao pagamento dos impostos devidos, mais têm de pagar aqueles que, como eu, não se dedicam a esse "desporto" tão nacional. 

Além da assegurar ao Estado e à UE as receitas necessárias, o combate à "economia paralela", imune ao fisco, é uma questão essencial de justiça fiscal e de confiança nas instituições.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

O caso Montenegro (12): O que importa saber sobre o "caso Spinumviva"

1. Na sua referida entrevista ao Observador, o PGR anunciou querer a conclusão da investigação ao caso Spinumviva (a célebre "empresa familiar" de Montenegro) até 15 de julho, início das férias judiciais.

Saúde-se a diligência do Ministério Público, plenamente justificada neste caso respeitante ao chefe do Governo em exercício, diligência que, porém, não é anunciada igualmente com prazos em relação ao caso Influencer, que leva anos de investigação e cujo anúncio público, há quase dois anos, incluía o célebre parágrafo assassino, que levou à demissão do então Primeiro-Ministro, António Costa, e à abertura de uma crise política que, entretanto, provocou duas eleições antecipadas e dois governos minoritários, além da promoção do Chega a 2º maior partido parlamentar -, processo sobre o qual não se conhece nenhum desenvolvimento neste tempo todo.

Pelos vistos, a diligência investigatória do MP é politicamente seletiva.

2. Para situar o caso Spinumviva, importa lembrar que ele começou por suscitar um inquérito parlamentar sobre uma alegada violação por Montenegro da condição de exclusividade legal nas funções governamentais, por a tal "empresa familiar" não passar de um meio de encobrir o facto de o chefe do Governo continuar a gerir a sua atividade e a beneficiar dos respetivos proventos.

Caducado o inquérito parlamentar por efeito da dissolução da AR, tudo indica que ele não vai ser retomado, por se entender - a meu ver, bem - que a referida falha de comportamemto ético-político, a ter existido, foi "amnistiada" pelo eleitorado, ao reconduzir Montenegro na chefia do Governo, com apoio reforçado, nas eleições que, irresponsavelmente, o PS, sob a desastrada liderança de Pedro Nuno Santos, lhe proporcionou.

Assunto encerrado, portanto, quando a esse ponto.

3. Restam, porém, os eventuais aspetos penais do caso, que não podiam ser objeto direto do inquérito parlamentar e que entretanto levaram o MP a abrir uma "investigação preventiva" sobre a questão. Que aspetos penais, e que indícios os suscitam? 

Recordando o que oportunamente fui escrevendo sobre o assunto (por exemplo, AQUI e AQUI), penso que há no caso Spinumviva dois aspetos penalmente relevantes, que obviamente não beneficiam da referida "amnistia eleitoral": 
     -  um provável caso de abuso da personalidade jurídica coletiva, para efeito de fuga ao fisco (substituição do IRS pelo IRC e reembolso do IVA na aquisição de bens e serviços, incluindo a possibilidade de imputação de despesas pessoais à pseudossociedade), se se mostrar que a tal empresa era um ficção, não tendo qualquer autonomia em relação ao seu fundador;
    - um possível caso de recebimento indevido de vantagem, se se mostrar que Montenegro continuou a beneficiar das respetivas avenças e outras receitas, sem correspondente prestação de serviços.

Julgo que é fácil confirmar ou infirmar essas suspeitas com um simples exame às contas e às despesas fiscais da suposta empresa e do seu fundador, pelo que a investigação pode perfeitamente ser concluída dentro do prazo assinalado pelo PGR. O que não é aceitável é que ela seja dada por concluída sem uma cabal investigação e esclarecimento público dos dois referidos aspetos


quinta-feira, 26 de junho de 2025

Reforma da justiça (13): Uma cultura penal inquinada

1. Segundo o Procurador-Geral da República, nesta entrevista«Sócrates tem todo o direito de provar [no seu julgamento] a sua inocência».

Infelizmente, não se trata de um lapsus linguae, mas de uma genuína expressão da cultura penal que prevalece no Ministério Público quando se trata de acusar políticos, segundo a qual, feita a acusação, é aos próprios arguidos que incumbe provar a sua inocência, assim invertendo o "ónus de prova" e negando o princípio constitucional da presunção de inocência - e o seu corolário, o princípio in dubio pro reo, ou seja, absolvição em caso de dúvida razoável -, que é uma das grandes heranças da revolução constitucional contra o Antigo Regime e o "princípio inquisitorial", tornando-se um esteio essencial do Estado de direito em matéria penal.

2. É evidente que no "tribunal" da opinião pública, com a prestimosa colaboração do Ministério Público (lembremos o espetáculo montado para a sua detenção ao regressar a Lisboa), o antigo Primeiro-Ministro já foi condenado, sem apelo nem agravo, há muito tempo, desde o início deste arrastado processo (aliás, em notória violação do direito a julgamento em prazo razoável). 

Mas no tribunal da República que o vai julgar, ainda é ao Ministério Público que incumbe a obrigação de provar devidamente a sua acusação, e não inverso.

[Alterada a rubrica originária]

quarta-feira, 25 de junho de 2025

+ União (88): Capachos de Trump, não!

 1. É uma vergonha esta mensagem de revoltante subserviência do Secretário-Geral da NATO, ex-chefe de governo dos Países Baixos, ao Presidente Trump, celebrando o aumento exponencial da despesa militar dos países europeus (quase todos também membros da UE), imposta por Washington.

Disgusting! Not im my name!

2. A União e os demais Estados-membros vão ficar calados perante esta miserável ameaça de Trump contra Espanha, se esta não cumprir a meta unilateralmente imposta de 5% de despesa militar, para mais numa matéria - o comércio externo - que é uma competência exclusiva da UE?!

Se é assim, tenho a declarar que esta não é a minha União!