sexta-feira, 20 de junho de 2025

Como era de temer (14): A "cheguização" do PSD

1. As notícias postas a circular pelo Governo quanto a restringir o acesso dos imigrantes à nacionalidade portuguesa e qanto à sua possível perda - nomeadamente dificultar a aquisição da nacionalidade por naturalização e criar uma nova pena de privação da nacionalidade para certos tipos de crimes - mostra que o processo de "cheguização" do PSD foi posto em marcha, preparando-se o Governo da AD para adotar iniciativas anti-imigração típicas do Chega, e que seguramente vão ter o seu apoio.

Motivadas por mesquinhos posições ideológicas, elas só vão alimentar os preconceitos anti-imigrantes  que a extrema-direita populista nutre sem escrúpulos.

2. Qanto à naturalização, considero que quem vive e trabalha em Portugal há mais de cinco anos, paga  impostos e contribuições para a segurança social, fala português e cumpre as leis e muito provavelmente tem família constutuída e os filhos na escola, têm tanto ou mais direito a adquirir a nacionalidade portuguesa - e por extensão a cidadania europeia - e passar a ter direitos políticos, do que os filhos de portugueses que nasceram e sempre moraram no estrangeiro, cujos pais já não nasceram em Portugal, que não pagam impostos cá nem estão sujeitos às leis nacionais, que muitas vezes já nem falam português e que só querem a nacionalidade para obter o passaporte nacional e a cidadania da UE.

Sim, há muitos nacionais fictícios, sem nehuma relação de afeto ou de interesse com a coletividade nacional, mas entre eles não se conta seguramente a generalidade dos naturalizados residentes em Portugal. O aumento de que se fala dos anos de residência necessários (de 5 para 10 anos) para a naturalização de imigrantes apenas irá retardar injustamente a sua plena integração na comunidade nacional.

3. Quanto à criação de uma pena suplementar de perda da nacionalidade por certos crimes cometidos por naturalizados - privando-os, portanto, de direitos políticos e tornando-os suscetíveis de expulsão ou de extradição, como estrangeiros que voltam a ser -, o que cabe perguntar à partida é se, à luz dos princípios da proporcionalidade e da não discriminação das penas criminais, próprios de um Estado de direito, faz sentido a criação uma pena adicional dessa gravidade, tendo como alvo especificamente uma certa categoria de pessoas, só por serem de origem estrangeira.

Independentemente da questão da sua constitucionalidade, essa medida é politicamente chocante, por vir ao arrepio da nossa tradição penal humanista desde a instauração do regime democrático. Nem tudo o que não é inconstitucional é politicamente aceitável num Estado democrático.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

O que o Presidente não deve fazer (56): Pode Belém rejeitar a equipe ministerial?

1. Ao afirmar, no comunicado público de Belém sobre a nomeação do novo Governo, que o Presidente «deu o seu assentimento» à equipa ministerial apresentada pelo Primeiro-Ministro, Marcelo Rebelo de Sousa deixa entender que podia não ter concordado, obrigando aquele a corrigi-la. Todavia, embora haja notícia de alguns casos passados de veto presidencial a um ou outro ministro, tal nunca foi prática frequente. E a melhor interpretação da Constituição não valida tal hipótese.

Com a revogação da responsabilidade política do Governo perante o Presidente, na revisão constitucional de 1982, este perdeu a tutela política que tinha sobre aquele, incluindo o relativo poder de escolha que tinha anteriormente na nomeação do Governo, a começar pelo PM, tendo agora de pautar-se exclusivamente pelos resultados das eleições parlamentares e consequente composição da Assembleia da República, tanto mais que na prática política as eleições parlamentares são disputadas em torno da escolha do melhor partido e do melhor líder partidário para governar e de opções de governação.

A necessidade de nomeação presidencial não significa que o Governo seja também da responsabilidade do Presidente, pois este se deve limitar a interpretar e seguir as indicações das eleições parlamentares. Embora o Governo comece a existir com a simples nomeação presidencial, a verdade é que ele só assume plenitude de funções depois da sua passagem parlamentar, ficando pelo caminho se for rejeitado (como sucedeu em 2015). Antes disso não passa de uma espécie de governo provisório, temporário e sob condição.

2. Quanto à nomeação dos ministros e secretários de Estado, deve agora prevalecer a proposta do PM, sem possibilidade de oposição do Presidente, por duas razões convergentes: (i) deve caber exclusivamente ao chefe do Governo escolher a equipe que ele melhor considera poder executar o programa de governo e responder politicamente por ele na AR; (ii) resulta claro da CRP que que as relações do Governo com o PR são estabelecidas por intermédio do PM, e não dos ministros, pelo que não existe razão para aquele interferir na composição da equipa governativa. Por isso, a formação do Governo não deve ser considerada como uma parceria entre o PM e o Presidente, em que este possa opor-se discricionariamente aos nomes propostos pelo primeiro.

Obviamente, no seu poder geral de aconselhamento do PM, o PR não está impedido de, nos seus encontros institucionais, levantar reservas em relação a algum nome, nem de sugerir alguma alteração ao elenco que lhe for apresentado. Mas uma coisa é aconselhamento, que o PM deve considerar seriamente, mas não é obrigado a seguir, outra é a possibilidade de o Presidente exercer um poder de veto dos nomes propostos. A última apalavra só pode ser a do PM, não podendo Presidente dar-lhe uma escusa para o eventual mau desempenho do seu Governo.

3. São, no entanto, de admitir duas exceções a esta regra de não ingerência presidencial na formação da equipe ministerial.  

A primeira aplica-se aos ministros da defesa e dos negócios estrangeiros, dada a especial relação do PR com esta duas áreas da política, pelo que se justifica reconhecer-lhe um poder de oposição em relação aos respetivos titulares, com quem vai encontrar-se no exercício as suas funções de representante externo da República e de Comandante Supremo das Forças Armadas. 

A segunda exceção consiste no dever de o PR rejeitar nomes que incorram em incapacidade ou incompatibilidade para o exercício de funções políticas. por exemplo, personalidades privadas de direitos políticos por decisão judicial ou magistrados judiciais, respetivamente. Lamentavelmente,  os presidentes, em geral, e MRS, em particular, têm sido pouco zelosos neste ponto, aceitando a nomeação de vários magistrados judicias para diversos cargos governamentais, como sucedeu ainda no Governo Montenegro I, com a Ministra da Administração Interna e com uma das secretárias de Estado da Justiça (o que denunciei prontamente AQUI) e voltou agora a repetir-se com a nomeação de um juiz para secretário de Estado da Justiça.

É a defesa do "regular funcionamento das instituições" que está em causa.

4. Se, pelas razões indicadas, a escolha da equipa ministerial deve ser considerada uma prerrogativa do PM, que a vai dirigir, outro tanto vale para a sua eventual remodelação posterior, substituindo alguns dos seus membros, quer quanto à sua oportunidade, quer quanto aos nomes envolvidos.

Por isso, sem prejuízo do poder de aconselhamento discreto ao PM, deve ser vedado ao Presidente exigir publicamente uma remodelação governativa ou a substituição de um ministro em concreto, como lamentavelmente sucedeu em maio de 2023, com a exigência de MRS de demissão do então Ministro das Infraestruturas, João Galamba, que o PM recusou ostensivamente, do que resultou um óbvio envenenamento das relações políticas entre Belém e São Bento, que culminou na inopinada dissolução parlamentar, na sequência da demissão de António Costa, por força do anúncio público de um pretenso envolvimento dele no caso Influencer.

Além de  um manifesto abuso de poder de Belém, esse ingerência pública na gestão da equipe governamental foi um exemplo claro de como o "poder moderador" do PR pode ser subvertido em "poder perturbador"!

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Eleições presidenciais 2026 (18): O erro do Almirante

1. Ao responder a uma pergunta sobre se promulgaria a lei da despenalizacão da eutanásia, com a afirmação de que é «pró-vida» e que teria «dificuldades em deixar passar uma lei que de alguma forma facilitasse o suicídio assistido ou a eutanásia», Gouveia e Melo cometeu, a meu ver, um duplo erro: um erro político e um erro de conceção do poder de veto presidencial na CRP. 

Quanto à questão política, ao utilizar a expressão "pró-vida" - que é típica do fundamentalismo antidespenalização do aborto e da eutanásia, de base religiosa -, o candidato coloca-se contra o sentimento de grande parte do País, não só na esquerda, mas também na direita mais genuinamente liberal, gerando o legítimo receio de que tal posição retrógada possa justificar, não somente a sua oposição à despenalização da eutanásia, como explicitou, se ela for retomada, mas também ao alargamento do prazo para o aborto por livre decisão da gestante, de 10 para 12 semanas, que está na agenda política há algum tempo.

Não é questão de somenos importância: uma coisa é suscitar a fiscalização preventiva da constitucionalidade - o que já foi feito em relação a ambas as situações -, outra coisa é recorrer ao veto político, fazendo sobrepor a sua convicção pessoal, por mais legítima que seja, à vontade democrática do legislador.

2. Não é menor a preocupação que a referida resposta suscita quanto à conceção sobre o exercício do veto legislativo

Com efeito, embora comece por afirmar, e bem, que o veto presidencial só deve ser exercido a título excecional, o candidato admite, porém, exercê-lo, não por qualquer motivo atinente às suas funções constitucionais, mas sim por discordância pessoal com a lei aprovada pelo legislador, ou seja, pela maioria da AR.

É certo que os anteriores inquilinos de Belém nem sempre escaparam a essa tentação, mas depois da inflação de vetos pelo atual PR cessante, é tempo de questionar esse desvio da função constitucional do veto, o qual só deve poder justificar-se à luz das funções constitucionais do Presidente. Na verdade, uma das regras essenciais da interpretação das competências das autoridade públicas é a de que não se trata de poderes plenamente discricionários, só podendo ser utilizados para a prossecução das atribuições das respetivas entidades, e não para outros fins, sob pena de "desvio de poder".

Ora, podem configurar-se díversas razões que podem justificar o veto presidencial, para salvaguardar o regular funcionamento das instituições e fazer respeitar as regras do jogo político, independentemente da  concordância ou discordância com a lei em causa, como por exemplo: essa lei contrariar o programa do Governo, dever merecer maior debate político e parlamentar, não ter sido objeto de avaliação de impacto legislativo (orçamental, ambiental, social), infringir normas da UE ou compromissos ou recomendações internacionais, desrespeitar o resultado de referendo recente, mesmo não vinculativo, suscitar problemas complicados de execução administrativa, não contribuir para a realização dos fins constitucionais do Estado, o veto ter sido recomendado pelo Conselho de Estado (caso o PR lho tenha submetido), etc.

Uma vez que o Presidente não é colegislador nem goza de um "direito de objeção de consciência" no desempenho das suas funções constitucionais, o veto não deve ser simples expressão de discordância subjetiva com a lei, nem muito menos, produto de caprichos ou estados de alma presidenciais.

3. Junto com o poder de dissolução parlamentar, o veto legislativo é a mais intrusiva derrogação do modelo clássico da separação de poderes, quanto à autonomia e ao exclusivo poder legislativo do parlamento, pelo que tais poderes só devem ser utilizados a título excecional.

O sistema de governo presidencialista instituiu, porém, o veto presidencial (EUA) e o sistema de governo parlamentar instituiu a dissolução parlamentar (Reino Unido), em ambos os casos para conferir ao executivo um instrumento de defesa contra o parlamento. Com a sua teoria do "quarto poder", investido no chefe do Estado, Constant conferiu-lhe ambos aqueles instrumentos (poder de veto e poder de dissolução), mas agora como componentes do seu "poder moderador" (como se veio a chamar depois), acima do poder legislativo e do poder executivo, e não, como anteriormente, enquanto instrumento de defesa do poder executivo contra o poder legislativo. 

Por isso, no caso da CRP, em que o PR detém um "poder moderador" de intensidade média (muito menor do que o da Carta Constitucional de 1826), ambos aqueles instrumentos só devem ser utilizados quando necessário para a cumprir a missão de contenção e equilíbrio institucional e de respeito pela Constituição, própria do "poder neutro" do Presidente, e não para satisfazer as idiossincrasias pessoais, políticas ou religiosas do seu titular.  

Aqui, como noutras áreas do sistema político, é essencial compreender e respeitar a filosofia e a lógica das instituições e dos poderes constitucionais.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Quando os tribunais erram (3): Propaganda política versus espaço público

A confirmar-se este notícia, segundo a qual a justiça administrativa anulou a decisão da CM de Lisboa que retirou painéis de propaganda partidária instalados no espaço urbano, trata-se de uma lastimável decisão, sem fundamento constitucional nem legal, que deve ser revertida em recurso.

Como tenho defendido noutras ocasiões  (por exemplo, AQUI, AQUI e AQUI), tal como não podem invadir o espaço privado, os partidos políticos também não têm direito a ocupar o domínio público urbano para efeitos de propaganda política, que tem de limitar-se aos espaços que o município deve reservar para esse efeito. O domínio público, que aliás goza de proteção constitucional explícita, é património de todos, para fruição comum, não podendo ser ocupado privativamente para fins particulares. 

A selva caótica de painéis e outdoors de propaganda política, invadindo passeios, praças, rotundas e eixos rodoviárias, sem paralelo em nenhum país civilizado, constitui um atentado qualificado ao direito coletivo à fruição visual do espaço urbano. Se a ocupação selvagem é, por princípio, intolerável, muito mais o é fora de períodos de campanha eleitoral, como agora.

Em vez de ser indevidamente anulada, a corajosa decisão da CM de Lisboa deve ser aplaudida e seguida por outros municípios.

Adenda
Um leitor invoca a «liberdade de propaganda, que é inerente ao direito de ação partidária». Mas nenhum direito constitucional pode ser exercido por meios ilícitos, que é o que está aqui em causa, mediante ocupação selvagem da propriedade pública, a qual não merece menos proteção do que a propriedade privada.

Adenda 2
Uma leitora socialista de Lisboa objeta que «enquanto retira os painéis de propaganda dos partidos políticos, a CML mantém os seus próprios painéis de publicidade institucional», de que junta algumas fotos (uma das quais publico). 
Mas não devemos confundir duas coisas inteiramente distintas: um coisa é a publicidade institucional de um município, em suportes devidamente licenciados, e outra coisa é a propaganda ilegal de partidos políticos em suportes instalados a esmo. A primeira pode ser debatida e contestada politicamente pelo PS nas instâncias municipais competentes (AML e CML) e terá de ser removida, logo que marcadas as eleições autárquicas, em obediência à regra da imparcialidade das autoridades públicas; a segunda, não pode pura e simplesmente ser admitida, pelas razões acima expostas. Aproveito, aliás, para estranhar tanto a complacência de um partido "institucional" como o PS, na CML e na CNE, com estas formas selvagens de propaganda partidária, à margem da legalidade democrática, como a inconsistência do PSD, que em Lisboa parece levar a sério a defesa do meio-ambiente urbano, mas que nos demais municípios do país alinha plenamente na sua depredação. Não fica bem a nenhum deles. Quando algumas vozes dos dois lados sugerem "pactos de regime" entre ambos os partidos, eis um tema possível para começar: pôr fim à indisciplina caótica da propaganda política, em que os partidos com mais meios e menos escrúpulos triunfam.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Sistema eleitoral (14): Duas mudanças inviáveis

1. Num artigo hoje publicado no Jornal de Notícias, o Professor Manuel Vilares apresenta duas hipóteses de solução para a atual assimetria de representação eleitoral do interior do País face ao litoral, a saber: (i) criar uma segunda câmara parlamentar de representação territorial, ao lado da AR, ou (ii) adicionar o fator território para efeitos de cálculo dos deputados a atribuir a cada círculo eleitoral, deixando estes de depender somente do número de eleitores, como é hoje.

Sucede, porém, que nenhuma desssas vias tem cabimento constitucional. E, a meu ver, nenhuma delas é politicamente convincente: 

   - a 1ª, porque um parlamento bicamaral complicaria ainda mais o funcionamento do sistema político e uma 2ª câmara de representação territorial dar-lhe-ia uma vertente protofederalista, que não deixaria de criar fortes engulhos políticos; 

   - a 2ª, porque a teoria do poder político representativo (representative government) foi construída desde o início na base da representação da coletividade dos cidadãos em geral e da igualdade do voto, onde não cabe a ponderação do valor do voto em função do território de residência dos eleitores.

Julgo, por isso, que nenhuma dessas soluções deve ser seriamente equacionada.

2. A apontada "assimetria de representação" não se deve somente à rarefação populacional do interior, mas também ao facto de a escolha dos antigos distritos como circunscrição eleitoral resultar em círculos eleitorais enormemente díspares quanto número de deputados (rácio de 1:24 na relação entre Portalegre e Lisboa!).

Para atenuar em muito essa assimetria, tenho defendido duas medidas, nenhuma das quais carece de revisão constitucional: (i) fundir os círculos mais pequenos, de modo que nenhum tivesse menos de 5 deputados (salvo os círculos da emigração) e cindir os maiores círculos, de modo que nenhum tivesse mais de 11 deputados (o que reduziria drasticamente a assimetria da relação deputado-votos); (ii) criar um círculo nacional sobreposto aos atuais círculos territoriais, elegendo 1/10 dos deputados, com base nos votos emitidos em todo o território nacional (o que reduziria enormemente o número de votos desperdiçados).

O problema é que os maiores partidos, ou seja, os que ganham alternadamente as eleições, receiam que estas duas mudanças lhes retirem duas coisas de que são beneficiários: o "voto útil" e a mais-valia dos pequenos círculos (onde só eles elegem deputados).

Adenda 
Um leitor não vê «razão para excetuar os círculos da emigração, que podem perfeitamente ser fundidos num só círculo com 5 deputados, pois não faz sentido nenhum a divisão entre emigrantes na Europa e fora dela». Concordando com a fusão, eles, porém, elegem 4 deputados e não 5, e a meu ver não devem eleger mais, pelo que a exceção se impõe.

Adenda 2
Um leitor objeta que  a solução do "círculo de compensação" nos Açores «veio dificultar a obtenção de maioria absoluta pelo partido vencedor das eleições regionais e complicar a governabilidade na região». Concordo, mas eu não defendo nenhum "círculo de compensação" na eleição da AR, ideia que sempre critiquei, pois no círculo nacional que proponho os mandatos seriam apurados e atribuídos autonomamente, não se destinando, como nos Açores, a atenuar o desvio da proporcionalidade causado pelos pequenos círculos eleitorais.

Adenda 3
Outro leitor acusa-me de procurar reduzir o número de partidos com representação parlamentar, pois «mesmo no círculo nacional seria necessário alcançar cerca de 4% para eleger um deputado». Sim, embora pense que o desempenho eleitoral dos pequenos partidos poderia melhorar com o fim da pressão para o "voto útil" e com negociação de coligações eleitorais (entre si ou com outros partidos), trata-se, porém, de uma opção deliberada, que há muito defendo - a de reduzir a fragmentação parlamentar e melhorar a governabilidade

domingo, 1 de junho de 2025

Eleições presidenciais 2026 (17): Separação entre candidatos e partidos

1. O apoio de Rui Rio - antigo presidente da CM do Porto e ex-líder do PSD - à candidatura presidencial de Gouveia e Melo, na qualidade de mandatário nacional, não se traduz somente numa importante alavancagem do almirante no eleitorado do centro político e um sério revés para Marques Mendes, no dia seguinte ao anúncio do apoio oficial do PSD à sua candidatura.

Mais importante do que isso é o forte testemunho da separação entre as eleições presidenciais e os partidos, que resulta das seguintes circuntâncias: as candidaturas não lhes caberem (como estipula a Constituição), haver candidatos que rejeitam apoios partidários (como é o caso justamente de Gouveia e Melo), partidos que não apoiam nenhum candidato (como pode ser o caso, mais uma vez, do PS), e muitos eleitores que não seguem as consignas partidárias (como é o caso de Rui Rio e outras conhecidas personalidades do PSD e como vai ser provavelmente o caso de personalidades socialistas, se o PS não apoiar nenhum candidato ou se apoiar A. J. Seguro).

Sendo um traço há muito característico das eleições presidenciais entre nós, tudo indica, porém, que a separação em relação aos partidos vai sair reforçada das presentes eleições.

2. Trata-se de uma opção constitucional intencional da CRP de 1976, de separar as eleições parlamentares, que são expressão da pluralidade político-partidária dos cidadãos, e a eleição presidencial, que visa obter uma representação unitária, transpartidária, da República, ou seja, da coletividade política no seu conjunto (por isso, o PR é eleito sempre por maioria absoluta). 

Enquanto as eleições parlamentares - que são disputadas entre partidos, na base de programas de governação - têm por fim apurar a maioria e a(s) minoria(s) parlamentares, de onde resulta o Governo e a oposição, nada disso se passa com as eleições presidenciais, que não são disputadas entre partidos nem entre programas de governação, nem dão lugar a nenhuma "maioria presidencial" oponível ou sobreponível à maioria parlamentar. 

Daí resulta que depois de eleito, o PR é um "poder neutro", acima da dialética governo-oposição, tendo por função velar pelo cumprimento das "regras do jogo" constitucionais e afins (incluindo o respeito dos direitos da oposição) e garantir o regular funcionamento das instituições, sem compartilhar nem ser corresponsável pelo poder legislativo e pelo poder executivo, que cabem respetivamente à AR e ao Governo, na base das eleições parlamentares.

Eis uma diferença essencial, nem sempre devidamente notada, em relação à eleição presidencial nos chamados regimes "semipresidencialistas", como a França e a Roménia.

3. O risco desta superlegitimidade política do PR e da natureza transpartidária do seu mandato consiste em os cidadãos tenderem a esperar dele o que ele não pode dar, ou seja, conforme as circuntâncias, que seja um contrapoder, em caso de governos de maioria absoluta (como se exigiu, por exemplo, a Soares contra os governos de Cavaco Silva), ou que assuma uma agenda reformista, no caso de governos minoritários (como se exigiu a Sampaio contra os governos de Guterres e como decorre agora do discurso de apoio de Rio a Gouveia e Melo).

Ora, se incumbe ao PR travar os eventuais abusos de poder de governos maioritários e suscitar os alertas decorrentes da inércia reformista de governos minoritários, já não lhe compete nem impedir o cumprimento do programa eleitoral dos primeiros, nem suprir as limitações e os constrangimentos dos segundos, ambos resultantes das eleições parlamentares, que as eleições presidenciais não podem corrigir. 

Para o bem e para o mal, o PR não governa nem é corresponsável pela atividade governativa, não podendo funcionar nem como oposição ao Governo nem como seu suplemento, conforme os casos.

sábado, 31 de maio de 2025

Laicidade (16): Incabimento

[Do Jornal de Notícias de hoje]

O Presidente da CMP não devia ter feito tal promessa, nem devia deixá-la para o próximo executivo, pela simples razão de que, ao abrigo da separação constitucional entre o Estado e as religiões, não cabe nas atribuições das entidades públicas tratar de disponibilizar templos religiosos (sejam igrejas, mesquitas, sinagogas, ou quaisquer outras.). Entre os serviços públicos municipais não cabe o de cuidar das necessidades religiosas dos munícipes.

Existindo a possibilidade, que o Estado dá a todos os contribuintes, de oferecerem uma parte do seu IRS a instituições sociais da sua escolha, os crentes podem usar essa via para financiar as suas igrejas. Coisa bem diferente é gastar dinheiro público - ou seja, dinheiro de todos os contribuintes (incluindo os não-crentes e os crentes de outras igrejas) - para esse efeito.

Quando é que as câmaras municipais se convencem de que não lhes compete fazer aquilo que é do foro próprio das igrejas e dos seus crentes? 

Adenda
Um leitor comenta: «o que está em causa é obter para ela [a comunidade islâmica] um terreno no qual construir o seu templo. Ora, qualquer pessoa pode fazer uma doação de um terreno (...). Não é à Câmara Municipal que cabe oferecer os seus terrenos, é aos munícipes que cabe fazê-lo.» Certo!.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Alma mater (5): Uma luta de décadas

Décadas depois da sua conceção, vai finalmente avançar a construção da biblioteca da FDUC, segundo o projeto originário do arquiteto Siza Vieira e no local desde o início escolhido, junto ao Palácio dos Melos (já afeto à Faculdade) e sobranceiro ao claustro da Sé Velha. 

Vencendo a atávica inércia institucional e a resistência centralista, o excecional acervo da biblioteca, de que me orgulho de ter sido beneficiário durante décadas e seu diretor durante alguns anos, vai finalmente ter acolhimento e condições de utilização condignas, deixando de estar caoticamente dispersa por inúmeras salas, corredores e gabinetes (e casas) dos professores.

Sem deixar de felicitar a direção da Faculdade e a reitoria da UC em funções por este impulso final, seria injusto esquecer os antigos professores (como J. J. Gomes Canotilho e  A. J. Avelãs Nunes) e prestigiosos alumni (como Artur Santos Silva) que nunca desistiram, como foi devidamente lembrado pelo atual diretor Jónatas Machado. Sem eles, a ideia teria ficado certamente pelo caminho das "obras de Santa Engrácia". 

Obrigado!

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Eleições presidenciais 2026 (16): O PS deveria ficar de fora

1. No dia em que o almirante Gouveia e Melo se apresenta como candidato, deliberadamente sem apoios partidários, e que Marques Mendes recebe a benção política do PSD, concordo com esta posição de A. Correia de Campos, hoje no Público, segundo a qual o PS deveria abster-se de apoiar candidato próprio nas eleições presidenciais, descartando obviamente o apoio a Seguro (que o não merece, por manifesta falta de estatuto de estadista) e prescindindo de pressionar Vitorino para avançar.

Considero principalmente duas razões. Primeiro, depois do desastre eleitoral do PS e face à óbvia atração de Gouveia e Melo sobre uma parte dos eleitores socialistas, mesmo um candidato de elevado gabarito para a função presidencial, como Vitorino (que eu não teria dúvidas em apoiar), arrisca uma votacão menor, indigna dele e do PS. Em segundo lugar, depois da deriva presidencialista do PR cessante (que tenho repetidamente denunciado), nestas eleições vai estar em causa também o perfil presidencial e os seus poderes; ora, um mau resultado de um candidato, como Vitorino, que defende uma visão moderada dos poderes presidenciais (que ele ajudou a definir na revisão constitucional de 1982), seria interpretado como derrota dessa visão, a favor de interpretações mais intervencionistas do inquilino de Belém.

Duas derrotas simultâneas, portanto

2. As coisas são o que são. Dada a sua natureza pessoal, as eleições presidenciais não envolvem uma competição partidária, e o PS arrisca-se a sair mal-ferido, se se envolver desnecessariamente nelas. Entre entrar e ficar de fora, a prudência política aconselha a continência.

Se o dossiê das presidenciais já não era fácil para os socialistas antes da pesada derrota eleitoral nas eleições parlamentares, tornou-se intratável depois do miserável legado político deixado pela imprudência e o egocentrismo de Pedro Nuno Santos, ao arrastar o Partido para a armadilha laboriosamente montada por Montenegro. 

A meu ver, o PS não tem de entrar em mais uma batalha eleitoral perdida à partida, nem tem de imolar nenhum militante qualificado ingloriamente nela.


Gostaria de ter escrito isto (38): Bombas contra pensões

«Eu, pelo menos, não consegui descortinar, na campanha [eleitoral], como é que Portugal vai fazer para passar a gastar 5% do PIB em defesa, ao mesmo tempo que tem um desafio gigante nomeadamente numa área importantíssima do Estado social, que é a segurança social. O nossos partidos limitam-se todos a dizer que vão aumentar as pensões e que isso é um pilar, mas, como sempre, ninguém explica como».

[Isabel Vaz, gestora do grupo Hospital da Luz, em entrevista ao Jornal de Negócios, AQUI; sublinhado acrescentado.]

SNS em questão (29): Inquérito parlamentar, já!

1. O escândalo no Hospital de Santa Maria, em que um médico contratado conseguiu cobrar mais de 400 000 euros por dez dias de trabalho, põe em causa frontalmente o controlo de gestão sobre contratos de prestação de serviços e sobre a contabilidade nos estabelecimentos do SNS, senbo óbvio que casos destes nunca aconteriam num estabelecimento de saúde privado ou sob gestão privada. E, se acontecessem, a administração não duraria mais de uma hora no lugar.

Inacreditavelmente, porém, a improvável Ministra da Saúde, em vez de pedir imediatamente responsabilidades, veio reiterar a sua confiança na administração. Como contribuinte pagador do SNS (que, porém, alivio de encargos, usando a ADSE e pagando a respetiva contribuição), não possso deixar de protestar contra este descontrolo da despesa. Isto é gozar com os contribuintes.

2. Face à gravidade dos casos asinalados - que não podem ter incorrido sem complacência ou negligência grosseira da direção dos serviços envolvidos -, julgo que se justifica plenamente um inquérito parlamentar, incluindo para saber se estes casos são isolados ou se não passam da ponta de um iceberg de descontrolo e de falta de avaliação e de prestação de contas da gestão do sistema hospitalar público.  

O SNS não pode continaur a ser vítima da sacanice de alguns prestadores de serviços e da incompetência e irresponsabilidade das cadeias de controlo, direção e gestão.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Assim, não vale (11): Candidaturas parlamentares a fingir

1. Afinal, o grande trunfo eleitoral do PS no círculo eleitoral do Porto, representado pelo prestigioso médico e gestor hospitalar Prof. Fernando Araújo, era uma candidatura a fingir, pois, como se suspeitava, não tardou a anunciar que não vai exercer o mandato, repetindo o triste precedente do diretor da FEUP do Porto, o Prof. Óscar Afonso, que, nas eleições do ano passado, também liderou a lista do PSD, igualmente para renunciar logo a seguir.

Esta encenação de candidaturas de personalidades de renome que afinal não são para valer, só para enganar eleitores, lesam a confiança dos cidadãos nos partidos e na democracia, e não dignificam as personalidades que se deixam irresponsavelmente instrumentalizar. Situações destas só alimentam o discurso populista contra as elites e o sistema parlamentar.

2. É tempo de evitar a repetição destas verdadeiras fraudes eleitorais e políticas. Quem aceita ser candidato em lugar elegível, especialmente no topo da lista, como é o caso, não pode fazê-lo com reserva mental, antecipadamente decidido a não exercer o mandato. Os eleitores merecem mais.

Julgo que é tempo de parar o processo de crescente desqualificação política do mandato parlamentar e do cargo de deputado, a qual, num círculo vicioso, dificulta o recrutamento de académicos e de profissionais prestigiados, e que acaba por se traduzir crescentemente numa desqualificação das próprias eleições e da nobreza da representação política parlamentar.

Proponho, por isso, que o estatuto legal dos deputados seja alterado, de modo a não consentir a renúncia ao mandato parlamentar, nem a sua suspensão (salvo por doença prolongada), pelo menos no 1º ano da legislatura.

3. Como é próprio de um sistema de governo de base parlamentar, a Constituiação admite que os deputados possam integrar o Governo sem perder o seu mandato parlamentar - o qual é suspenso, sendo recuperado no fim das funções governamentais -, mas penso que se deve ir mais longe, de modo a reforçar o recrutamento dos membros do Governo na sua base parlamentar. 

Por isso, no projeto de revisão constitucional pessoal que estou a preparar, proponho que o primeiro-ministro e pelo menos metade dos ministros sejam nomeados de entre deputados, desde logo porque a legitimidade política do Governo vem das eleições parlamentares e a sua subssistência depende da confiança (ou melhor, da não-desconfiança) parlamentar. 

Ao contrário do que sucede hoje, quem quiser ser ministro deve estar preparado para ser eleito deputado e exercer o mandato, em prol do reforço do crédito público no parlamento.

Adenda
Um leitor comenta que faltas de respeito dos partidos pelos eleitores como estas são uma «ajuda ao voto anti-sistema no Chega». Tem razão.

Adenda 2
Quanto ao nº 3 (Primeiro-Ministro saído da AR), um leitor objeta que «o Estado italiano foi parcialmente salvo por Mario Draghi como primeiro-ministro, ele que não era de partido nenhum, e que o Estado francês é encabeçado por Emmanuel Macron, que também não veio (que me recorde) de nenhum dos principais partidos». Mas o argumento não é concludente: a França é um protopresidencialismo (onde o PR é, aliás, proposto por partidos) e a Itália é uma democracia parlamentar disfuncional (aliás, em vias de adotar a eleição direta do primeiro-ministro, junto com o parlamento...), enquanto Portugal é uma democracia parlamentar baseada na competição eleitoral dos partidos pelo Governo, via parlamento.

domingo, 25 de maio de 2025

Não concordo (51): Fetichismo constitucional

1. Na sua coluna de hoje no Diário de Notícias, Pedro Tadeu vem defender que o preâmbulo da Constituição, incluindo a menção do objetivo socialista, não é suscetível de revisão, apesar de ser evidente que tal referência se tornou manifestamente vazia de sentido, começando logo com a 1ª revisão, em 1982, quando a ordem económica passou a ser deixada no essencial à maioria política de cada legislatura, com alguns limites, mas sem um objetivo constitucionalmente imposto, e sem ter posto em causa os direitos sociais e o Estado social, que, como mostra a história, nossa e alheia, não dependem de uma ordem económica mais ou menos estatizada e coletivizada. 

A tese da irrevisiblidade não é inédita nem disparatada, mas não é incontornável. Tratando-se efetivamente do decreto da Assembleia Constituinte que há meio século aprovou a versão originária da Constituição, ele não seria suscetível de revisão enquanto tal. Mas, sob pena de estéril fetichismo político, nada obsta a que o texto possa ser reformulado, deixando a sua função originária e passando a ser uma apresentação da história da Constituição e dos seus atuais traços essenciais.

2. No meu projeto pessoal de revisão constitucional, que estou a preparar para ser publicado no próximo ano, no cinquentenário da CRP, visando modernizá-la e prepará-la para mais meio século de vigência, proponho a seguinte redação do Preâmbulo, a que junto uma sumária nota explicativa:

 «A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista. 
Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa. 
A Revolução restituiu aos Portugueses os direitos e liberdades fundamentais. No exercício destes direitos e liberdades, os legítimos representantes do povo reúnem-se para aprovar aprovaram uma Constituição que para corresponder às aspirações do país. 
A Assembleia Constituinte afirma afirmou a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma socidade socialista no respeito da vontade do povo português, com vista a um país mais livre, mais justo e mais fraterno.
A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de Abril de 1976, aprova e decreta a seguinte aprovou e decretou a Constituição da República Portuguesa, a qual, após as revisões constitucionais aprovadas de acordo com o procedimento nela previsto, tem o seguinte texto: »
«Nota explicativa: 
O Preâmbulo deixa de ser o decreto da Assembleia Constituinte de 1976, autonomizando-se como evocação da origem da Constituição e como introdução ao texto constitucional vigente. Quanto ao conteúdo, retira-se a referência ao “socialismo”, claramente tornada caduca pelas sucessivas reformas do texto constitucional.»

Penso que, nesta nova versão (de que não cobro direitos de autor...), o preâmbulo da CRP só perde um incómodo "galho seco", que os seus adversários agitam como espantalho, enquanto ganha consistência e autoridade política.

Adenda
Um leitor defende a eliminação do Preâmbulo, «para evitar mais polémicas inúteis». Discordo, em absoluto: primeiro, porque ele faz a necessária ligação entre a CRP e a revolução política que lhe deu origem, ou seja, o 25A74, sendo a sua tradução jurídica -, o que alguns querem esquecer; segundo, porque ele continua a sintetizar muito bem, e em formulações textuais lapidares, o essencial da decisão constituinte de 1975-76, dando corpo às conquistas da Revolução, e que, com a ressalva agora proposta, continua plenamente válida, desmentindo os ignorantes ataques de que por vezes ela é alvo. A propósito da qualidade e da mensagem do texto, importa revelar o que pode ser desconhecido por muitos: como se pode ver AQUIo preâmbulo foi o último texto a ser fixado, numa comissão presidida por Sophia de Melo Breyner (PS) e cujo relator foi Manuel Alegre (PS), autor do texto, tendo sido adotado por consenso

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Era o que faltava (15): Insegurança constitucional

1. Nos assomos anti-PS do PSD só faltava mesmo a infâmia de compartilhar com o Chega a revisão da Constituição e o acesso ao Tribunal Constitucional à margem do PS, como defendem despudoradamente, por estes dias, alguns dos seus opinadores.

Não se trata somente de mandar às urtigas o compromisso "não-é-não" de Montenegro, visto que seria um "sim" muito mais grave do que um eventual acordo de governo. O que estaria em causa seria a aliança de um partido fundador da democracia constitucional (na sua versão orginária e em todas as suas revisões), nascida de um revolução política e constitucional contra a ditadura do "Estado Novo", com um partido assumidadamente contrário ao atual regime constitucional e que não esconde assumir alguns dos traços doutrinários do antigo regime.

Resta saber se se trata somente de uma provocação política gratuita ou de uma intenção assumida de enveredar por essa afronta, não apenas ao PS, mas também à história e identidade política do próprio PSD. Urge que o seu líder clarifique a situação.

2. A revisão constitucional não ocupou nenhum lugar de relevo no temário das recentes eleições parlamentares e não se vê que obstáculo é que a Constituição oferece ao programa eleitoral da AD.

Sem dúvida que a CRP, que não é revista há 20 anos, ganharia em ser revista para efeito de "poda" de alguns "galhos secos", de melhoria de algumas soluções que o tempo provou menos consistentes e de modernização de linguagem e de conceitos. Mas não se vê como é que tal pode ser feito com um partido caracterizadamente antirregime constitucional, em vez de ser conseguido por negociação entre os partidos democráticos, nomeadamente entre os dois que sempre têm protagonizado todas as anteriores revisões cosntitucionais (o PS e o PSD ) e que, no atual quadro parlamentar, podem fazer a necessária maioria de 2/3 tanto com a IL, como com o Livre (bastando que o PSD venha a somar mais um deputado nos círculos da emigração).

Acresce que, segundo um prática constante, as alterações constitucionais precisam de um votação final global pela mesma maioria de 2/3, o que quer dizer que nenhuma alteração constitucional é viável se não tiver a concordância de todos os partidos que a vão aprovar no final, em conjunto. Isto significa que, a ser aberto o processo de revisão constitucional, o PSD tem de decidir à partida e anunciar com quem a vai fazer: com o Chega (e a IL) ou com o PS (e a IL ou o Livre). 

Sendo certo que o PS não pode deixar de anunciar à partida que não votará nenhuma revisão que contenha uma alteração votada pelo Chega contra o voto socialista, vai a direção do PSD deixar essa questão crucial em aberto até quando?

3.  A questão do Tribunal Constitucional é ainda mais grave, visto que ele é autoridade que interpreta e aplica em última instância a Constituição, pelo que esta poderia mudar sem nenhuma revisão constitucional, por efeito da modificação da composição do Tribunal e da sua jurisprudência.

Ora, a arquitetura do TC foi desenhada na revisão constitucional de 1982 pelo PS e o PSD, de modo a garantir, quando aos dez juizes eleitos na AR (por maioria de 2/3), um equilíbrio essencial entre as sensibilidades constitucionais representadas por um e por outro. Um acordo adicional entre ambos os partidos, até agora nunca desrespeitado, assegura que as vagas quanto a juízes eleitos (por fim de mandato ou por renúncia) são preenchidas por novos juízes da mesma sensibilidade, comprometendo-se cada partido a apoiar os candidatos do outro (sem prejuízo de veto individual).

Não é preciso estudar direito constitucional para saber que, numa democracia liberal, os partidos e as instituições políticas não estão vinculados somente aos preceitos constitucionais, mas também por "convenções constitucionais" resultantes de acordos explíticos ou de práticas continuadas comummente aceites.

É certo que, também nesta questão, os dois partidos deixaram de somar 2/3 dos deputados, maioria que, no campo parlamentar democrático, só se perfaz com um terceiro partido (IL ou Livre), pelo que deixaram de poder eleger sozinhos os juízes do TC. Também aqui, porém, a questão é saber se o PSD admite abrir o Tribunal Constitucional ao Chega, abandonando desavergonhadamente o referido pacto estabelecido com o PS em 1982.

4. As sucessivas crises políticas dos últimos anos, com as repetidas dissoluções parlamentares e  governos de curta duração, trouxeram para a ribalta o valor da estabilidade política em geral e da estabilidade governativa em particular.

Mas a dramática mudança da composição parlamentar decorrente das eleições de domingo passado e o flirt sem escrúpulos da área do PSD com a admissão do Chega na revisão constitucional e no Tribunal Constitucional suscita uma instabilidade mais funda, a da insegurança constitucional, com a qual nenhuma estabilidade política é compatível. Não se pode "brincar" assim com a segurança constitucional do País.

Parece óbvio que o PSD não pode pedir ao PS que não se junte ao Chega para pôr em causa a viabilidade do seu Governo minoriário e, ao mesmo tempo, ameaçar o PS com a hipótese de rever a Constituição e de eleger juízes do TC com o Chega, à margem daquele e contra ele.

Há jogadas políticas rasteiras que a mais elementar moralidade política exclui na luta política leal numa democracia constitucional.  O PS não pode deixar de exigir uma pronta clarificação oficial do PSD quanto à sua fidelidade às regras do jogo democrático de que é coautor, e que estão em vigor desde a origem do regime constitucional.

Adenda
Um leitor acrescenta que o referido acordo político entre PSD e PS quanto à composição do TC abrange também a alternância das duas "sensibilidades" na ocupação do cargo de presidente do Tribunal. Tem razão, e também nesse aspeto ele tem sido respeitado por ambas as partes.


quarta-feira, 21 de maio de 2025

Conferências & colóquios (10): O papel dos parlamentos locais


Quando se aproxima a renovação eleitoral quadrienal dos órgãos do poder local, lá para finais de setembro, este colóquio, em boa hora promovido pela prestigiada AEDREL, propõe-se revisitar e debater o estado da nossa democracia local.

Pela minha parte, proponho-me abordar a situação das assembleias municipais, suscitando a questão do seu quadro jurídico-institucional, que vem desde 1976, e que limita o seu papel como verdadeiros parlamentos municipais, que deveriam ser.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Manifesto dos 50 (13): Apresentação do livro, desta vez em Guimarães

Depois do lançamento em Lisboa e no Porto, eis mais uma sessão de apresentação pública das ideias do «Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça» e do livro entretanto publicado, desta vez em Guimarães, no Tribunal da Relação, numa iniciativa do Professor António Cândido de Oliveira e do Dr. André Coelho Lima, ambos subscritores do Manifesto, a que tenho a oportunidade e o gosto em me associar.

Esperamos não ficar por aqui!

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (16): E agora, PS?

1. Depois deste desastre eleitoral, numas eleições que podia e devia ter evitado, e que só surpreendeu pelos números, o que deve fazer o PS, além de lamber as feridas e preparar o processo de seleção de nova liderança?

Ocorre-me recordar o que escrevi num post há tempos:

«(...) estando excluída entre nós, pelo menos por agora, a hipótese de governos de grande coligação ao centro (à alemã), não é impossível, porém, equacionar um pacto estável entre os dois tradicionais partidos de governo , no sentido de, em caso de vitória eleitoral sem maioria absoluta, cada um deles deixar governar o outro salvo coligação governamental maioritária alternativa -, viabilizando a constituição do Governo e prescindindo de votar moções de censura, a troco da negociação dos orçamentos (...).

Parecendo-me excluída a repetição de maiorias absolutas monopartidárias - por causa fragmentação da representação parlamentar - e também pouco provável a hipótese de coligações maioritárias, quer do PSD com a sua direita (excluindo obviamente o Chega), quer do PS com a sua esquerda (excluindo o Bloco e o PCP), este acordo entre os dois partidos de governo faz todo o sentido, para ambos, agora e no futuro.

Um acordo desta natureza era obviamente inviável para o PS sob a liderança de PNS - refém daquilo que eu chamo há muito a "ala bloquista" do PS -, mas não vejo como pode deixar de ser equacionado por uma nova direção, necessariamente menos radical e mais racional.

2. Julgo que, além da estabilidade governativa que um acordo destes geraria, bem como do quadro favorável aos necessários "acordos de regime" entre ambos os partidos (na reforma da justiça, da lei eleitoral, do SNS, etc.), ele torna-se neste momento essencial para assegurar ao PS um seguro contra o risco de tentação do PSD de utilizar a maioria de 2/3 dos deputados que a nova AR confere ao conjunto dos partidos de direita, para fazer aprovar contra o PS, não somente alterações às leis que carecem daquela maioria (entre as quais a lei eleitoral) e a designação de cargos públicos de topo (como os juízes do Tribunal Constitucional), mas também a própria revisão constitucional.

Ou seja, além da estabilidade governativa, o que está em causa é também a própria estabilidade do regime constitucional vigente, o que, nas vésperas da celebração dos seus 50 anos, devia estar entre as prioridades políticas de ambos os partidos, e em especial do PS.

Adenda
Um leitor acusa-me de propor a «reedição do bloco central» (que foi o nome dado ao governo de coligação entre PS e PSD em 1983-85), mas sem nenhuma razão, pois essa solução está explicitamente afastado no meu texto. Nem sequer proponho a negociação do programa de governo nem um compromisso sobre políticas públicas. Penso que o PS deve assumir-se como oposição. Como digo acima, entendo que pode e deve haver entendimentos para os chamados "acordos de regime", desde logo porque a Constituição exige maioria de 2/3 para as respetivas leis. E, embora possa haver espaço para entendimentos com o Governo quanto a algumas políticas sectoriais, penso que o espaço para isso é limitado. O que proponho, desde há muito, é um pacto entre PS e PSD quanto à sustentação recíproca dos seus governos minoritários, e penso que tal pacto é essencial no atual quadro parlamentar, pelas razões que indico no final do meu post. Sem um compromisso como o que proponho, que consolide o afastamento a do PSD em relação ao Chega, ficaremos sempre sob a chantagem de ver posto em causa o próprio regime constitucional vigente, que assenta, desde a origem, num compromisso do PS e do PSD quanto aos seus pilares.


domingo, 18 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (15): PS: uma derrota histórica

 1. O grande derrotado destas eleições é indubitavelmente o PS, que conseguiu fazer muito pior do que no ano passado, com a maior derrota desde há 38 anos (1ª maioria absoluta de Cavaco Silva, em 1987), agora, porém, politicamente agravada pelo comprometedor empate com o Chega (ainda sem os deputados da emigração...). 

Entre as razões por que defendi que o PS devia ter evitado estes eleições, não caindo na armadilha montada por Montenegro, esteve o alerta para um novo resultado desfavorável. No post de 17 de março, escrevi:

«A seu favor o PS tem o golpe na credibilidade do líder do PSD, por causa do caso Spinumviva e da fuga para eleições, bem como as dificuldades governamentais em várias áreas, como a saúde e a cultura. Contra ele, porém, tem a boa situação económica e social, que favorece o Governo, e a distribuição de benesses prodigalizadas, ao longo destes meses, a várias constituencies eleitorais importantes, mercê do excedente orçamental que recebeu dos governos do PS. Ora, não há memória de a oposição ganhar eleições quando a economia e as finanças correm bem ao Governo...

Acresce que, apesar do louvável exercício de moderação e responsabilidade de que deu provas ao viabilizar o Governo da AD e, depois, ao recusar-se a derrubá-lo, mediante a abstenção na votação de moções de censura, a liderança de PNS continua sem se conseguir afirmar para fora do Partido (o que os projetados Estados gerais poderiam ter permitido) e sem que o seu estilo de comunicação política consiga gerar a necessária adesão e empatia no eleitor comum. Ora, nas eleições parlamentares, a disputa também envolve os líderes dos partidos candidatos ao Governo, como potenciais primeiros-ministros, o que estabelece especiais exigências ao challenger... 

Em suma, nada indica que vá ser fácil a aposta do PS nestas eleições, que poderia ter travado.»

O líder e a direção do PS preferiram ignorar este alerta, que não fui o único a exprimir, e o PS pagou cara a imprudência, com o desastre eleitoral de hoje

2. De facto, a derrota do PS só surpreende pelos números, muito mais gravosos do que o antecipado. 

Pela primeira vez, o PS repete duas derrotas consecutivas com menos, bastante menos, de 30%, o que só tinha ocorrido em 1985 e 1987, com o nascimento do PRD e ascenção do cavaquismo. Para agravar a dimensão da derrota, as esquerdas no seu conjunto, apesar da subida do Livre, não chegam aos 35%, ainda menos do que no ano passado - um resultado calamitoso.

Creio que PNS e a atual direção socialista devem assumir, sem demora, a inteira responsabilidade por este severo desenlace, gerado pelo seu leviano caprichismo político, apesar dos riscos óbvios e dos avisos recebidos, a que se seguiu um processo em que nada correu bem: o programa eleitoral, as listas, a campanha. 

O PS não deve enfrentar as próximas batalhas políticas - eleições autárquicas e presidenciais - com uma liderança claramente desautorizada nas urnas e que mostrou não estar à altura dos desafios. Impõe-se abrir imediatamente o processo de renovação, para alimentar a esperança da recuperação, que não vai ser fácil, nem rápida.

Adenda
O SG do PS acaba de anunciar a sua demissão, como devia. Penso que nunca devia ter chegado a ocupar o cargo, para o qual não estava devidamente apetrechado.

Adenda 2
Para agravar profundamente a derrota do PS e das esquerdas, os partidos de direita somados têm mais de 2/3 dos deputados (AD-89+Chega-58+IL -9), mesmo sem contar os da emigração, o que dá para alterar, sem o PS, as leis que requerem tal maioria qualificada (como as leis eleitorais) e proceder à revisão da Consttituição - o que até gora nunca tinha sucedido.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (14): Irresponsabilidade da AD

 

Este gráfico do jornal Público, baseado num estudo do Iscte sobre os custos dos programas eleitorais, mostra que, para além da tradicional incontinência e falta de seriedade política do PCP e do Chega, a AD também revela uma inaceitável demagogia política, sobretudo quando comparado com a responsável contenção do programa do PS, o que, em partidos que pretendem a renovação do mandato governativo, é de uma supina irresponsabilidade orçamental. 

É evidente que eles não contam cumprir as promessas que fazem e que incorrem numa operação não séria de compra de votos.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Free and fair trade (23): O acordo UE-Mercosul

Amanhã, quarta-feira, vou estar aqui, para falar do Acordo comercial UE-Mercosul, cuja demorada e difícil negociação segui desde que fui presidente da Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu, no mandato 2009-2014, que incluiu a visita de uma delegação oficial a Brasília (Câmara dos Deputados e Itamaraty) e a São Paulo (FIESP).

Celebrando a feliz conclusão do Acordo no ano passado, resta-me agora confiar que ele vai ser ratificado pelas duas partes sem mais demora, para vantagem mútua, e como resposta positiva à saída dos EUA da ordem económica internacional sujeita a regras - as da OMC e as dos acordos preferenciais livremente celebrados, como este.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (14): Não a partidos regionais na AR

Parece que um partido apenas radicado na Madeira, o Juntos pelo Povo (JPP), e que só apresentou candidaturas em metade dos círculos eleitorais (onde, aliás, é invisível), pode vir a obter um mandato na AR por aquele círculo eleitoral, mesmo sendo ínfima a sua votação a nível nacional.

No entanto, a Constituição proíbe a existência de «partidos regionais» e determina que «os deputados representam todo o País, e não os círculos por que são eleitos». Ora, como pode representar todo o País o deputado de um partido que só goza de apoio eleitoral significativo num círculo eleitoral (que representa 2,5% da população do País) e cuja votação a nível nacional vai ser irrisória? E como se respeita a regra constitucional da igualdade do valor dos votos e da representação parlamentar («sufrágio igual», diz a Constituição), se tal partido vai muito provavelmente obter, a nível ancional, votação inferior à de outros partidos nacionais que não vão eleger deputados?

Além de manifesta "regionalização" da representação política nacional, trata-se de um situação politicamente iníqua, que não não condiz nem com a letra nem com o espírito da Constituição.

Adenda
Um leitor objeta que seria «antidemocrático» impedir a representação parlamentar de tal partido, por limitar a sua expressão política. Mas o que me parece pouco ou nada democrático é que um partido de expressão política localizada obtenha representação na AR, que visa representar todo o País, sem votação relevante a nível nacional, quando outros partidos com maior votação o não conseguem.  

Adenda 2
Outro leitor observa que o único modo de impedir situações dessas seria a adoção de uma "cláusula-barreira" eleitoral (ou seja, um limiar de votação a nível nacional como condição para obter representação parlamentar), tal como existe em vários países (Espanha, Alemanha, etc.), mas que a nossa Constituição exclui expressamente. É verdade, mas, mesmo sem remover esse preceito constitucional, não é impossível obter um efeito semelhante, exigindo que os partidos obtenham uma votação mínima num certo número de círculos eleitorais, como prova de que não têm expressão exclusivamente regional.

domingo, 11 de maio de 2025

História constitucional (13): As assembleias constituintes de 1911 e de 1975-76

 


Neste número da JN História, que acaba de sair, é publicado o 2º artigo da minha coautoria como Prof. José Domingues, que conclui o que foi publicado no nº anterior, completando um breve panorama histórico sobre as quatro assembleias constituintes nacionais, correspondentes a outras tantas revoluções políticas e constitucionais (1820-22, 1836-38, 1910-11 e 1974-76.

Neste segundo artigo, abordamos as duas assembleias constituintes do século XX - ou seja, as de 1911 e de 1975-76, que aprovaram respetivamente a Constituição de 1911 e a CRP de 1976 - e concluimos com uma breve síntese comparativa das quatro constituintes, destacando as principais semelhanças e diferenças entre elas (modo de eleição, poderes, duração, procedimento constituinte, etc.).

Assinalando o 50º aniversário das eleições constituintes de 1975 - as mais democráticas de sempre -, o nosso objetivo é facultar a um público mais vasto do que os círculos académicos uma introdução às experiências de poder constituinte democrático em Portugal.

Corrigenda
Por lapso de paginação da revista, o 1º parágrafo da peça impressa, acima reproduzida, não pertence ao nosso texto, que, portanto, só começa no 2º parágrafo. As nossas desculpas.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Não é bem assim (20): Podem os naturalizados ser candidatos a PR?

Neste comentário do Polígrafo do Sapo, corrigindo o disparate de um candidato de extrema-direita, sobre a pretensa possibilidade de um imigrante naturalizado ser candidato a PR, lê-se o seguinte: 
«É absolutamente falso que um cidadão com dupla nacionalidade possa ser Presidente da República em Portugal. Na Parte III da Constituição, relativa à organização do poder político, o artigo 122.º, sobre a elegibilidade do Presidente da República, dita que só são elegíveis os cidadãos eleitores, portugueses de origem, maiores de 35 anos.»

Há aqui uma confusão: os imigrantes naturalizados não podem efetivamente ser candidatos a PR, não por terem dupla nacionalidade, como se escreve no comentário transcrito (que até podem não ter), mas sim por não serem portugueses de origem, como diz a referida norma constitucional. Com efeito, a Constituição não impede que um cidadão português de origem que tenha outra nacionalidade - por exemplo, filho de portugueses nascido no Brasil - possa ser candidato a PR.

O que se pode discutir é se esta solução não devia ser corrigida, como defendo, mudando a norma constitucional, para impedir a candidatura de cidadãos binacionais a PR (e a outros cargos políticos, como PM), por risco de conflito de interesses entre as duas nacionalidades.

[texto revisto]

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Stars & Stripes (21): Tiro pela culatra

Boas notícias: economia dos EUA no negativo, apesar do aumento do consumo e do investimento, devido à redução da despesa pública e ao agravamento da balança comercial, por efeito do aumento das importações, por antecipação dos consumidores e das empresas à subida das tarifas aduaneiras. 
Bem feito! A únicas coisas que podem virar os cidadãos americanos contra Trump são os anunciados cortes orçamentais nos programas sociais e a degradação da economia, que, pelos vistos, já começa a fazer o seu serviço.

sábado, 3 de maio de 2025

Rasto no tempo (3): Uma homenagem devida


Aplauso para esta homenagem de uma prestigiosa instituição de Coimbra a um ilustríssimo cidadão da cidade - o Professor J. J. Gomes Canotilho -, uma pessoa de caráter e integridade moral sem mácula, um académico prestigiado que honra a Universidade de Coimba, um constitucionalista de topo, dentro e fora de portas, um intelectual inquieto e um homem culto (honrado pelo prémio Pessoa), um humanista solidário com as causas da humanidade e um conimbricense adotivo que não tem perdido ocasião para prestigiar a cidade. 

Não pondendo estar pessoalmente presente, por motivo de ausência de Coimbra, não quero de deixar de me associar a esta justíssima homenagem. Aqui ficam o meu testemunho e as minhas felicitações pessoais: parabéns, Joaquim!

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (15): Montenegro "apanhado"

1. Esta estória da correção da declaração de interesses de Montenegro, por intimação da Entidade da Transparência, contada AQUI, mostra duas coisas muito importantes: (i) que ele faltava à verdade ao garantir que tinha declarado tudo o que era legalmente necessário, quando afinal tinha omitido vários clientes da sua empresa pessoal de prestação de serviços, a Spinumviva;  (ii) que o PS tinha toda a razão, ao incluir no seu requerimento de inquérito parlamentar justamente o controlo da veracidade da declaração de interesses do Primeiro-Ministro. 

Mas esta estória mostra mais: que Montenegro optou por esgotar o prazo de 30 dias dado pela Entidade da Transparência para a correção da falta, a fim de adiar ao máximo o seu conhecimento público, como é devido, quiçá para depois das eleições. Não é propriamente uma conduta digna de um líder partidário que se propõe renovar o seu mandato na chefia do Governo.

2. Todavia, a notícia da correção que lhe foi exigida veio destruir a sua laboriosa tentativa de meter o caso da sua empresa pessoal "debaixo do tapete" durante a campanha eleitoral e reavivar a suspeita, bem mais grave, sobre a violação da exclusividade como governante, que também era objeto do inquérito parlamentar do PS, e cujo esclarecimento Montenegro persiste em recusar, não exibindo os documentos que provem que não continuou a ser o verdadeiro responsável pela prestação de serviços da sua empresa, nem a beneficiar das respetivas avenças.

É de novo a dúvida sobre o cumprimento das obrigações legais (e não somente éticas) quanto a transparência e a incompatibilidades do PM cessante que está de novo na praça pública.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Amanhã vou estar aqui (21): Nos 199 anos da Carta Constitucional de 1826

Para melhor compreender uma peça essencial da nossa história constitucional - que amanhã perfaz 199 anos e que, até agora, foi a mais duradoura das nossas seis constituições -, que tambem é uma fonte importante para o entendimento do sistema político na CRP de 1976.

sábado, 26 de abril de 2025

Memórias acidentais (27): Deputado constituinte (1975-76)

1. A passagem, ontem assinalada, dos 50 anos das eleições constituintes de 25/4/1975 trouxe-me à memória alguns aspetos da minha atividade como deputado constituinte, em 1975-76, que culminou na aprovação da Constituição de 1976.

Ainda não tinha 30 anos, era assistente da Faculdade de Direito da UC e, por causa da revolução, interrompera a preparação do doutoramento em teoria da Constituição que estava a preparar em Londres, tendo regressado logo a Portugal, envolvendo-me em pleno na atividade política.

Comecei por não ser diretamente eleito, pois o PCP só elegeu um deputado no círculo eleitoral de Coimbra, e eu era o 2º candidato, a seguir ao dirigente nacional do partido, Blanqui Teixeira. Mas não tardei a rumar para Lisboa, pois logo no início dos trabalhos da Constituinte ele pediu a renúncia ao mandato para me fazer entrar, desde logo porque só havia outro jurista no grupo de deputados (o advogado José Lopes de Almeida) e eu era o único que tinha algum conhecimento de direito constitucional, tendo defendido a minha tese de pós-graduação nessa área, pelo que integrava o grupo de trabalho encarregado da elaboração do projeto de Constituição do partido, juntamente com os meus amigos e colegas da FDUC, J. J. Gomes Canotilho e Aníbal Almeida.

Por essa razão, e por poder suspender a atividade profissional e não ter responsabilidades partidárias, como muitos outros deputados, pude entregar-me em dedicação plena à minha nova tarefa, com a consciência de que era para mim uma oportunidade histórica de participar no desenho de uma nova Constituição do País.

2. Acresce que no chamado "verão quente" de 1975, o PCP estava mais empenhado na revolução do que na Constituição, o que se refletia no relativo desinteresse que os dirigentes do partido, incluindo o presidente do grupo parlamentar, Otávio Pato, dedicavam ao Palácio de São Bento, em especial no que se referia à preparação da Constituição.

Nessas circunsbtâncias, acabei por assumir informalmente o papel de principal porta-voz do partido na Constituinte, quer nos debates no plenário, quer no trabalho de várias comissões, nomeadamente na principal delas, a V Comissão, encarregada da organização do poder político, ou seja, de grande parte da Constituição, mas também nas comissões de princípios fundamentais, do poder local, das disposições finais e transitórias e na comissão de redação final (de que tive a honra de ser relator perante o plenário da Constituinte). Durante grande parte do tempo, não recebia e raramente pedia instruções à direção do partido sobre as questões constituintes, limitando-me a enviar um relatório semanal sobre o andamento dos trabalhos e sobre as posições por nós adotadas (relatórios que ainda devo ter guardados algures). 

Não admira, por isso, que, como mostra a figura abaixo (colhida num livro sobre a Assembleia Constituinte referido em post anterior), eu tenha sido o deputado mais interventivo, o que, ressalvados alguns dispensáveis excessos oratórios, revela o meu profundo empenho e a minha dedicação absoluta à tarefa constituinte.

3. Entre as minhas preocupações políticas em São Bento avultava uma, que era a de manter o PCP efetivamente comprometido com a elaboração da Constituição, de modo a não alimentar a impressão de que ele era hostil à Constituinte, como podia resultar de alguma imprensa que lhe era afeta, pois essa perceção contrariava a genuína preocupação partidária de garantir proteção constitucional para as chamadas "conquistas revolucionárias" (descolonização, democracia, liberdades públicas e direitos dos trabalhadores, "organizações populares de base", nacionalizações e reforma agrária). Julgo que tive alguma responsabilidade em «encostar a Constituição à esquerda», como alguém já escreveu.

Não foi por acaso que, depois do fim do ciclo revolucionário, com o Termidor do 25 de novembro de 1975, o PCP tivesse passado a dar uma nova atenção à Constituinte, acabando por saudar e votar de bom-grado a Constituição, justamente por esta ter salvaguardado o acquis revolucionário e, em alguns casos, ter ido além dele (por exemplo, nos direitos sociais, como o SNS, e até no capítulo da organização económica). 

Sem falsa modéstia, julgo ter contribuído para essa relação de amizade constitucional do PCP, que foi decisiva para manter o compromisso do partido com o regime democrático-constitucional, sem quebras ao longo dos anos.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

História política (4): As eleições constituintes de há 50 anos


1. Duas exposições assinalam em Lisboa as eleições constituintes de 25 de abril de 1975: uma na Fundação Gulbenkian, inaugurada há dias, que é uma iniciativa da Comissão de comemoração dos 50 anos do 25A, e outra na AR, hoje inaugurada, logo após a sessão comemorativa do 25 de Abril, este ano também comemorativa dos 50 anos das eleições, com a presença de vários deputados constituintes, convidados para o efeito.

Justifica-se plenamente esta atenção a essas eleições, por várias razões:
    - por a sua realização ter representado o cumprimento de um dos principais compromissos do MFA, logo anunciado no seu primeiro comunicado público, no próprio dia 25 de abril de 1974;
    - por elas terem sido eleições sem precedente nossa história política em diversos aspetos: primeiras eleições por sufrágio universal, pela primeira vez por voto genuinamente pessoal e secreto (expresso pelos próprio eleitores em cabine na própria assembleia eleitoral), em competição pluripartidária, com atribuição proporcional de mandatos (que em 1911 só tinha sido aplicada nos círculos eleitorais de Lisboa e do Porto) e com representação dos residentes no estrangeiro (embora só com um deputado);
    - pela excecional afluência de mais de 90% dos eleitores, nunca antes nem depois repetida;
    - por terem sido fundadoras ao atual regime constitucional, ao elegerem os partidos e os deputados que fizeram a Constituição de 1976, em tantos aspetos também uma Lei Fundamental sem precedentes, mesmo quanto às três constituições anteriores também saídas de revoluções populares (1822, 1838, 1911).

As mais democráticas eleições, portanto, que deram origem também à mais democrática Constituição.

2. A mais ambiciosa das duas referidas exposições, a da Gulbenkian, começa por recordar a ficção das eleições (presidenciais e legislativas) durante a ditadura do chamado "Estado Novo" e as tentativas da oposição democrática, na sua diversidade, de as aproveitar para denunciar o regime e mobilizar o combate contra ele, com destaque para a épica campanha presidencial de Humberto Delgado em 1958 e a animada campanha das eleições legislativas de 1969. 

Quanto às eleições de 1975, a exposição fornece notável informação histórica, quer documental quer visual, sobre a sua preparação e a sua realização, incluindo profusa ilustração da campanha eleitoral e sobre a noite eleitoral e os resultados, com recurso a registos televisivos da época. Uma notável evocação!

Lamentavelmente, a exposição não é acompanhada de catálogo que perpetue o grande acervo informativo nela disponibilizado.

3. No entanto, nesta exposição não sufrago três aspetos históricos
     - primeiro, é de estranhar a simples referência de passagem à grave tentativa de violar o programa do MFA quanto às eleições constituintes, que foi a proposta de Spínola e de Palma Carlos - respetivamente, o primeiro PR e e o primeiro PM a seguir à Revolução -, logo em julho de 1974, para a convocação imediata de eleições presidenciais e de plebiscito de uma "Constituição provisória", o que teria matado a revolução à nascença;
     - segundo, não compartilho a ideia de que em 1975, a seguir ao 11 de março, as eleições estiveram em sério risco de não se realizarem ou de serem indefinidamente adiadas, pois só estavam contra elas os micropartidos de extrema-esquerda, com escasso peso político, apesar da sua visibilidade política nas ruas de Lisboa e em alguns jornais, e uma pequena fação radical do MFA, sem eco, porém, na direção do movimento;
     - por último, considero excessiva a ideia de ter sido uma "campanha eleitoral violenta", pois, além de isso não se sentir no terreno na época (eu estive lá, e até tive uma "sessão de esclarecimento" boicotada), os casos de violência foram pontuais entre os milhares de iniciativas de campanha, e raramente envolveram militantes dos principais partidos.

A história deste período fundador do atual regime democrático não beneficia com a veiculação de perceções que, embora tendo existido em alguns círculos políticos da época, não tinham substrato suficiente para vingar.